Saudações flamengas a todos.
Essa semana proponho um desafio. Identificar o protagonista da história que segue. Uma história bonita e inusitada. Boa leitura.
* * *
O sonho
de Zezinho é jogar bola.
Talento
ele sabe que tem. Isso sempre fica claro nas peladas de sua Bangu, em
que é destaque, artilheiro, craque e estrela dos times em que joga.
Igualmente
há o prazer. Zezinho se sente flutuando com uma bola nos pés, é
capaz de passar horas e horas e horas perdido na mais remota pelada.
Os cansativos exercícios de aprimoramento (chute na parede,
embaixadas) também o divertem inapelavelmente.
E os
devaneios de menino... A terra batida do subúrbio se traveste de um
Maracanã, um Wembley. O trapo rasgado de Zezinho se torna a dez da
Seleção, do Flamengo. Cada gol, cada aplauso entusiasmado da
barulhenta malta de moleques lhe chega aos ouvidos como o urro de uma
nação enlouquecida a seus pés. Zezinho se perde, Zezinho divaga,
Zezinho se sente irremediavelmente imerso naquela realidade que lhe é
tão distante.
Distante
como o Flamengo, ou mesmo os outros grandes da
cidade. Zezinho vai ter que tentar a sorte em um recanto mais
próximo, dentro do que permite sua realidade de menino pobre.
E Zezinho
vai tentar a sorte no Campo Grande, o Campusca, conhecido celeiro de
craques. Logo se destaca, não tem dificuldades para ser efetivado no
infantil. Habilidoso e muito rápido, a bola lhe gruda aos pés.
Visão de jogo cerebral, possui incrível facilidade para encontrar
um companheiro livre. Bom finalizador, erige um vasto cartel de gols
marcados de todas as formas. Não demora, Zezinho ganha a camisa 10 e
vira uma das joias das divisões de base do alvinegro suburbano.
Começa a disputar campeonatos. Seu nome transborda as fronteiras do
escaldante subúrbio. Vira revelação.
É quando
aparece o Botafogo.
E
Zezinho desembarca seu talento, agora em uma equipe de expressão.
Mesmo com
a concorrência (nem sempre leal), os holofotes mais acesos, a
marcação mais cerrada, a pressão, Zezinho se sai bem no primeiro
ano. Consegue se manter titular do time de sua categoria de base,
mostra bom futebol, e seu desempenho já anima alguns olheiros que o
veem, em alguns anos, vestindo a camisa dez botafoguense. A ajuda de
custo que recebe também permite a Zezinho melhorar de vida, guardar
alguns caraminguás. O horizonte parece amplamente promissor para o
menino que sonhou jogar bola.
Mas vem a
água gelada.
Ao subir
de categoria, Zezinho se depara com um treinador que cisma com seu
biotipo. De fato, Zezinho tem dificuldade de ganhar massa muscular, é
baixinho, quase franzino. Com 1.53 m de altura não há como
prosperar no futebol profissional. Não há lugar para um jogador com
corpo de garoto no meio da cerrada selva do futebol adulto. Esse
Zezinho até tem bom jogo, mas assim não serve. Está dispensado.
E, olhos
entumescidos da raivosa lágrima de quem tem seus sonhos
estilhaçados, Zezinho lentamente junta seus trapos e vai ganhar o
amargo rumo do frustrado retorno dos que não vencem.
Não por
muito tempo.
Alguém
toma conhecimento da situação de Zezinho. Vai atrás do garoto.
Você tem alguma coisa em mente? Não, talvez voltar pro Campusca, ou
sair disso, sei lá. Olha, eu tenho uma proposta, tenho como lhe
arranjar um teste no Flamengo, NO FLAMENGO? Sim, os olheiros de lá
falaram bem de você, acho que você passa, o que acha? Claro que
topo, só me dizer quando.
E é com
o sangue fervendo, olhos em brasa, a pele febril de entusiasmo que
Zezinho literalmente esmerilha a bola no seu teste na Gávea. Faz
coisas celestiais, diabólicas, joga com uma fome de torcedor, a
ânsia dos que sabem que ali, e somente ali, está a resposta para
seu futuro. Sua vida. O paraíso ou o inferno dos relegados. Não há
meio-termo.
Zezinho
passa com louvor. Mas ainda há o problema do biotipo.
O
Flamengo reconhece que Zezinho é muito mirrado e precisa se
desenvolver, mas acena com uma solução. Um tratamento a base de um
medicamento que promete acelerar o metabolismo corporal,
intensificando a assimilação de nutrientes e o consequente
desenvolvimento corporal e muscular. Preocupado e reticente (com medo
de complicações colaterais futuras), Zezinho acaba aceitando se
submeter ao tal tratamento.
No
entanto, algo sai errado. Uma injeção, duas, dez. E nada,
rigorosamente nada acontece.
Com o
mesmo corpo de menino, Zezinho se assusta e interrompe o tratamento.
Começa a perder espaço para garotos mais jovens e corpulentos, mas
o Flamengo não pensa, ao menos ainda, em se desfazer dele, pois seu
futebol impressiona, Zezinho evolui e se torna um meia completo. A
ideia é tentar o recurso tradicional, usando e abusando das salas de
musculação.
Súbito,
dá-se o fenômeno.
Do nada,
sem qualquer estímulo, qualquer remédio, qualquer regime alimentar
diferente daquele que é ministrado para atletas de alto rendimento,
o menino começa a crescer. Como em uma farsesca animação infantil,
Zezinho literalmente espicha a cada dia, para assombro dos
fisicultores que, estarrecidos, vão registrando a evolução diária
das dimensões orgânicas do jovem. Em um lapso de poucos meses,
Zezinho cresce cerca de TRINTA centímetros. É quando se lembra
daquelas injeções lá de trás. Deve ter sido isso, concluem, e não
mais se trata do assunto.
Quando
enfim se estabiliza em seu novo corpo, Zezinho percebe radicais
alterações em seu futebol. Está maior, mais forte, mais alto. E
também mais lento. Não consegue mais escorrer-se em velocidade
pelas entranhas da defesa adversária, as tabelinhas que lhe saíam
fluidas agora são neutralizadas, os deslocamentos não são mais
faiscantes. Perde intensidade, contundência. Torna-se facilmente
marcável. Ainda estão intactas a habilidade e a visão de jogo, mas
agora Zezinho é um meia comum, mediano.
“Você
vai ser volante”, decreta o treinador. Mas as dificuldades
permanecem. Zezinho não tem velocidade para ir e voltar, trabalhar a
cobertura de laterais e zagueiros, ocupar com intensidade cada palmo
da acirrada área central do campo. Mas ao menos percebe que agora
sua visão de jogo o permite antever as jogadas, antecipar-se aos
atacantes, deslocar-se com inteligência, praticar o desarme limpo e
sem choques.
“Já
entendi. Tenho a solução definitiva para você.”, enfim vaticina
o técnico, que o coloca na defesa, posição de onde não mais sairá
até irromper nos profissionais dali a poucos anos.
E em toda
a sua carreira.
O
Maracanã está lindo, em festa, apinhado. O acanhado Zezinho
alinha-se com seus dez companheiros. Alguém o leva para a frente da
torcida do Flamengo. O feérico espetáculo de rolos de papel e
fumaça, as bandeiras que tremulam, as palmas, o seu nome gritado,
tudo começa a girar em um caleidoscópio em negro e vermelho onde
vão se amalgamando as lembranças de Bangu, Campo Grande, o dedo
apontado do treinador-carrasco, a injeção, a fome, a terra batida,
a bola de meia, os sonhos de criança, o Maraca... e tudo gira à
alucinada velocidade de uma vida de extremos, berrando o sonho e o
real em apenas um átimo. O chão foge dos pés. E Zezinho quase
desmaia.
No
primeiro lance, uma voadora, falta duríssima, cartão. Os mais
rodados chegam junto, “calma garoto, não precisa disso, vai mais
macio senão você é expulso”, e por sorte o time vai prendendo a
bola na frente, Zezinho se recompõe, e mais calmo exibe seu
luxuriante futebol até então desconhecido. “Surge um craque”,
as letras garrafais darão nos jornais de segunda. Aplaudido e
festejado, Zezinho agora se percebe parte integrante daquela vida.
Será jogador profissional, será titular, ídolo. E vencerá na
vida.
Como
sempre sonhou o menino de Bangu.