A antiga tevê
Telefunken trepida, a festa parece lhe saltar da tela.
Escorado,
quase deitado, em seu sólido e espartano sofá, o velho vai
acompanhando a tudo, olhos meio desatentos, enquanto sorve sua dose
diária de leite de camela. Pés esticados, não exprime o mais
remoto traço de emoção enquanto a pequena tela vai faiscando em
vermelho e preto. As paredes do casebre também parecem festejar,
pululando aos pipocos dos fogos que vão aos poucos engrossando a
noite. Isso vai longe, pensa, ao tempo que abandona qualquer intenção
de dormir nas próximas horas. Será impossível.
Súbito,
uma pancada. Duas, três, várias, cada vez mais nervosas. É a
porta.
Sem
parecer assustado, ou mesmo surpreso, o velho se ergue com preguiça
e vagar, vira o restante do conteúdo do copo com um gole vertical e
assertivo e vai atender ao chamado. Antes de abrir, constata que são
cinco. Dessa vez trouxeram reforços, pensa, recordando a semelhante visita de quatro anos antes. Tranquilo, pensa, terei diversão pra
passar o tempo. Abre a porta.
Quié?
Pai Leru?
Pode nos receber? adianta-se uma voz delicada, provavelmente a mesma
da visita anterior.
Os fogos
e os gritos já soam ensurdecedores. Bem, entrem logo, porra. Aqui
não vai dar pra ficar muito tempo.
Os
visitantes vão se apertando em um pequeno canto da minúscula sala.
O feiticeiro resolve desligar a tevê, menos por se preocupar com
eventuais suscetibilidades do que para tentar reduzir o ruído.
Enquanto isso, seus pequenos olhos vão vasculhando. Está lá o
mesmo rapaz empolado e maneiroso, cheio de trejeitos, mas suas vestes
lhe parecem agora mais simples, sem a mesma ostentação de outros
tempos, uma calça grená justa ao corpo, uma camisa em verde claro.
Também está lá o senhor choroso de camisa preta e estrela no
peito. Em um bolso, o indefectível lenço. Parece cansado. Reconhece
com dificuldade o luso, com sua fisionomia acabada. Está em trapos,
barba amarfanhada, a camisa rasgada, a cruz de malta desbotada, quase
invisível. Ao cruzar seus olhos com o velho, vai logo pedindo, o
senhor podia me arrumar um pouco de água, e enquanto aponta a jarra
de barro ao sujeito, Pai Leru detém-se nos dois novos. Um deles
traja um garboso blazer branco, com calça social preta e uma camisa
com listras brancas e vermelhas, parece-lhe algodão do bom. Pele
imaculadamente branca, provavelmente maquiada, expressão entediada e
blasé, um refinamento quase efeminado e uma mal disfarçada vontade
de acabar logo com aquilo, denunciada pela frequência com que leva
seu pulso esquerdo aos olhos. O último membro do grupo veste-se de
maneira deliberadamente ostensiva, uma camisa preta com a marca da
grife em letras garrafais, uma calça jeans também preta, também
com a logomarca despudorada, um tênis branco de cano alto com o
swoosh gritando, correntão dourado, argolão, relógio de parede
amarrado ao pulso, marca suíça, de um dourado faiscante, embora com
alguns pequenos pontos escuros, parecendo ferrugem, que, embora
discretos, chamaram a atenção do velho. Bem, hora de começar a
arenga.
O que
vocês querem?
Você
sabe, adianta-se o sujeito da roupa colorida. Não está ouvindo o
barulho aí fora? Sim, é o
Flamengo campeão (pronuncia devagar, isso parece diverti-lo). E daí?
Precisamos
acertar outro pacote daqueles. Não é possível. Achava que depois
daquilo eles iam levar dez, vinte anos. E UM ANO depois do vencimento
do pacote os caras já estão ganhando título nacional de novo. Não
é possível, vai começar tudo de novo? Olha o Maracanã, todo jogo
lota, botam o preço que querem, estão faturando os tubos. Hoje
tinha gente até na marquise.
MARQUIIIIIIISE!!!!
EU VOU ME JOGAAAAAAR, O PÁÁÁÁÁÁ!!!!!
O bruxo
se impressiona com a deterioração do português. Antes um sujeito
altivo, lá com suas neuroses, mas orgulhoso, confiante, hoje
reduzido a um trapo, olhos esbugalhados, esquálida e patética
caricatura do que um dia suscitou ao menos respeito. Aos poucos se
acalma, bebe mais água. Silencia.
O
colorido segue. Está
vendo? Esse estado de coisas não pode continuar. Ele está indo pro
rebaixamento de novo. Isso é justo, é certo? Meu amigo rebaixado
enquanto os mulambos festejam? Precisamos de um pacote ainda mais
forte, mais pesado, mais decisivo, mais definitivo, mais...
Um
momento, corta o velho. Eu avisei, não avisei? Falei que o Rainbow
Prime faria eles se organizarem. Falei, preveni, que forças
poderosas seriam mobilizadas, que a instituição acordaria de sua
letargia e se reergueria. Vocês, gananciosos, toparam, ignoraram
minha advertência. Tiveram seus três anos, deitaram e rolaram,
ganharam tudo enquanto o lado deles penava com a nadadora, o
tricolete e o catador de camisa. Só que eles reagiram. Falei que
eles iriam reagir, se rearrumar. A encomenda de vocês interferiu no
curso de fenômenos naturais muito fortes. Agora aguenta. Sinto
muito, não posso fazer nada. Há um processo em curso, e não tenho
como interferir. Outra coisa, não é só seu amigo que pode ser
rebaixado. Acho bom tu te lembrar do Serra, do São Raimundo...
Serra
não, Serra não..., treme o colorido.
Então é
assim? Campeão e pronto? No seco? E a gente fica aqui parado,
chorando? Eu sabia, eu sabia, tava bom demais, tinha que dar
errado...o senhor estrelado puxa o lenço e começa a soluçar.
O velho
retruca (isso vai ficar divertido), só se for você, ô gamela. O
que você queria? Acha que o mundo se resume a Garrincha, Heleno e
Patesko? Que ainda estamos no tempo do Vargas? Que vocês ainda têm
torcida? Acabou, filho. Tempo passou. Vocês foram alguma coisa, hoje
não passam de um flanelinha das glórias alheias, cavaleiro de
prados guaranis, migalhando um carioquinha aqui e ali. E vou te dar
um conselho. Pare de jogar dominó com seus amigos ameriquinhas, você
vai acabar ficando igual a eles.
O choro
se torna mais histérico, o que irrita o rapaz colorido. Peraí
velho, você não pode sair nos destratando assim. Somos grandes,
temos história, juntos somos maiores e melhores que aqueles
mulambos, eu mesmo, na qualidade de principal representante do Rio...
Fica na
tua, ô floridinho. Principal é o meu ovo. Olhe pra você. Todo
cheio de pompa, de conversa bonita, de querer ser o que não é. Vive
atrás de um gigolô pra bancar seus delírios, às vezes consegue
arrumar um otário. Mas a casa tá caindo. Agora taí, o Serasa
batendo na tua porta, cobrando boleto antigo. E você preocupado com
o Flamengo. Grana acabou, né, filho? Engrossa essa voz e anda como
homem, porra! Esquece o Flamengo. Vai cuidar da tua passagem pra
Juazeiro, Varginha, Chapecó (epa, Chapecó agora é elite, risca...)
Ah, velho
mau, velho vendido, velho do esquema, do...! O doido descabelado
volta a guinchar.
Ah não,
B! (o velho parece visivelmente à vontade com isso). E você? Vive,
anda, respira Flamengo. Sua felicidade é a derrocada deles, só
pensa neles. Tem sede de Flamengo, sede, muita sede. Virou um fiapo,
sua obsessão lhe sugou toda a energia, a dignidade. Arrasta-se
uivando “Mídia, Globo, FBI, complô...” pelas vielas e becos.
Você não existe mais.
Eu só
queria... voltar a ser vice... murmura e some.
Minha
Nossa Senhora do Morumbi, que espetáculo deprimeeeeeente, desmunheca
o rapaz do blazer, até então calado. O que estou fazendo aqui,
ouvindo esse velho desancando a todos? Que deselegante, tão Terceiro
Mundo isso... Deveria ter ficado em casa, desmarquei meu podólogo!
Ai, que frustraaaante...
Ué, e
veio por que, então?
É que
mandei buscar um vidente que usava técnicas romenas de
prestidigitação, coisa avançada, muito tudo, Europa toda aderiu,
sabe? Aí pedi a ele pra indicar o caminho, o cenário, porque esse
ano foi meio chato, abafa, abafa. E começaram a aparecer umas letras
soltas, e aí subiu uma fumaça negra, um brilho lá, e enfim veio
uma mensagem, que o moço disse que era “a palavra do oráculo”.
Dizia, “Lasciate ogni speranza, DCF CRF”. Ele disse que o oráculo
não falhava. Fiquei bege, passaaaaaado. Aí me falaram desse Pai
Bilu aí, e resolvi escutar uma segunda voz. E agora estou aqui,
nesse pardieiro imundo ouvindo essas coisas, ai que humilhaaaante!
Pai Bilu
é a PQP, biba! Você é outro que só quer saber de Flamengo. Todo
cheiroso, limpinho, arrumadinho, cheio de goma, destila a mais torpe
das invejas. Denomina-se “O Mais Querido”, chama seus jogadores
de “Deus da Raça”, rouba taças. Usurpa. Intriga. É
protagonista sem protagonismo, estrela sem palco, líder sem carisma.
Não tem aplausos, não lhe repercutem, não lhe amam. No fundo,
sonhas com a mão forte e viril, o grito gutural “É Flamengo,
porra” lhe invadindo os ouvidos e as entranhas. Ah, e cuidado.
Outros anos “meio chatos” deverão aparecer na sua vida.
O rapaz
já arfa, arrepiado, e antes que esboce resposta o último dos
visitantes enfim resolve se manifestar. Não sem antes cuspir no
chão.
Muito bem
vovô, já deu o seu show. Vamos resolver essa treta, e é agora.
Venha aqui no canto.
Mesmo
incomodado com o tom autoritário do sujeito, Leru acede, já parece
cansado. Agora estão sós, na cozinha. O sujeito começa a falar,
num tom agressivo e intimidador.
A treta é
a seguinte, mano. Vamos botar a real na fita. A real é a grana, meu.
Tenho grana. Muita grana.
E nisso abre um bolso lá da calça, dele retirando maços e maços, uma visão que faz cintilar os olhos do velho, que pensa, eu depenaria esse pato fácil fácil, mas é melhor não, dizem que ele já comprou jogadores, juízes, campeonatos, estádios, que anda com gente da máfia, melhor não arriscar.
O “mano”
prossegue. Então,
gostou, velho? Ajeito mais, muito mais. Só você fazer o trabalhinho
e tirar os caras da reta. Isso deles ganhando coisa não é legal.
Atrapalha minha treta. Esquece aqueles buchas lá da sala. Tudo
bagrinho. Aqui você tá falando com o todo-poderoso, o maior de
todos, tenho a maior torcida, maior time, maior estádio, sou o mais
valioso, sou o mais lembrado, o mais...
Sei,
interrompe o feiticeiro, visivelmente irritado. Guarda essa
pluri-cascata lá pro teu pessoal do Belenzinho, que gosta de se
lambuzar com toda a merda que lhe jogam na cara. Aqui, não. Aliás,
não tô vendo todo-poderoso nenhum. Tô vendo é um cascateiro
picareta que se ajeitou com alguns parceiros certos e anda tendo um
brilhareco aí de fim de semana. Chefete de aldeia com delírios de
superioridade. Emergente. Não tens traço da grandeza, da história,
da tradição, do carisma e da representatividade nem de alguns dos
teus colegas, e quer falar do Flamengo. Fora da tua casa, te ignoram,
te desconhecem e riem da tua cara. Já que é pra “mandar a real”,
agora é minha vez. O que vem, vai. Aliás, 2014 vai ser divertido
pra ti, não? Tanto jogo internacional, não é mesmo? Araras,
Taquaritinga...
O “mano”,
enfurecido, ensaia puxar o canivete, mas antes disso o velho grita
algo como “shavurzka nabritchska empalala futut”, e a arma se
desfaz em pedaços. Assustado, volta para a sala.
Vamos
embora, aqui não há o que fazer.
Antes de
despedir os visitantes, o velho ainda dá o último recado, não
adianta virem aqui. Não há como interferir, agora é a natureza
trabalhando. Se os flamengos continuarem mobilizados e organizados,
uma nova Era pode estar se iniciando, gostem vocês ou não. E
enquanto estiverem unidos, essa zuadeira aí de fora vai ser cada vez
mais frequente. E não vão parar só em Copa do Brasil. Agora, sumam.
Enquanto
os vultos praguejantes vão sumindo nas vielas apertadas, Leru volta
a ligar a televisão. A festa do título ainda está lá, insistente.
O velho senta e agora resolve prestar certa atenção no estádio que
pula, nos jogadores que festejam, na taça que dança nas mãos
suadas dos heróis da conquista.
E é
nesse exato momento que, sem perceber, Pai Leru se permite um leve
sorriso.