domingo, 8 de dezembro de 2013

Alfarrábios do Melo

A antiga tevê Telefunken trepida, a festa parece lhe saltar da tela.

Escorado, quase deitado, em seu sólido e espartano sofá, o velho vai acompanhando a tudo, olhos meio desatentos, enquanto sorve sua dose diária de leite de camela. Pés esticados, não exprime o mais remoto traço de emoção enquanto a pequena tela vai faiscando em vermelho e preto. As paredes do casebre também parecem festejar, pululando aos pipocos dos fogos que vão aos poucos engrossando a noite. Isso vai longe, pensa, ao tempo que abandona qualquer intenção de dormir nas próximas horas. Será impossível.
Súbito, uma pancada. Duas, três, várias, cada vez mais nervosas. É a porta.

Sem parecer assustado, ou mesmo surpreso, o velho se ergue com preguiça e vagar, vira o restante do conteúdo do copo com um gole vertical e assertivo e vai atender ao chamado. Antes de abrir, constata que são cinco. Dessa vez trouxeram reforços, pensa, recordando a semelhante visita de quatro anos antes. Tranquilo, pensa, terei diversão pra passar o tempo. Abre a porta.

Quié?

Pai Leru? Pode nos receber? adianta-se uma voz delicada, provavelmente a mesma da visita anterior.

Os fogos e os gritos já soam ensurdecedores. Bem, entrem logo, porra. Aqui não vai dar pra ficar muito tempo.

Os visitantes vão se apertando em um pequeno canto da minúscula sala. O feiticeiro resolve desligar a tevê, menos por se preocupar com eventuais suscetibilidades do que para tentar reduzir o ruído. Enquanto isso, seus pequenos olhos vão vasculhando. Está lá o mesmo rapaz empolado e maneiroso, cheio de trejeitos, mas suas vestes lhe parecem agora mais simples, sem a mesma ostentação de outros tempos, uma calça grená justa ao corpo, uma camisa em verde claro. Também está lá o senhor choroso de camisa preta e estrela no peito. Em um bolso, o indefectível lenço. Parece cansado. Reconhece com dificuldade o luso, com sua fisionomia acabada. Está em trapos, barba amarfanhada, a camisa rasgada, a cruz de malta desbotada, quase invisível. Ao cruzar seus olhos com o velho, vai logo pedindo, o senhor podia me arrumar um pouco de água, e enquanto aponta a jarra de barro ao sujeito, Pai Leru detém-se nos dois novos. Um deles traja um garboso blazer branco, com calça social preta e uma camisa com listras brancas e vermelhas, parece-lhe algodão do bom. Pele imaculadamente branca, provavelmente maquiada, expressão entediada e blasé, um refinamento quase efeminado e uma mal disfarçada vontade de acabar logo com aquilo, denunciada pela frequência com que leva seu pulso esquerdo aos olhos. O último membro do grupo veste-se de maneira deliberadamente ostensiva, uma camisa preta com a marca da grife em letras garrafais, uma calça jeans também preta, também com a logomarca despudorada, um tênis branco de cano alto com o swoosh gritando, correntão dourado, argolão, relógio de parede amarrado ao pulso, marca suíça, de um dourado faiscante, embora com alguns pequenos pontos escuros, parecendo ferrugem, que, embora discretos, chamaram a atenção do velho. Bem, hora de começar a arenga.

O que vocês querem?

Você sabe, adianta-se o sujeito da roupa colorida. Não está ouvindo o barulho aí fora? Sim, é o Flamengo campeão (pronuncia devagar, isso parece diverti-lo). E daí?

Precisamos acertar outro pacote daqueles. Não é possível. Achava que depois daquilo eles iam levar dez, vinte anos. E UM ANO depois do vencimento do pacote os caras já estão ganhando título nacional de novo. Não é possível, vai começar tudo de novo? Olha o Maracanã, todo jogo lota, botam o preço que querem, estão faturando os tubos. Hoje tinha gente até na marquise.

MARQUIIIIIIISE!!!! EU VOU ME JOGAAAAAAR, O PÁÁÁÁÁÁ!!!!!

O bruxo se impressiona com a deterioração do português. Antes um sujeito altivo, lá com suas neuroses, mas orgulhoso, confiante, hoje reduzido a um trapo, olhos esbugalhados, esquálida e patética caricatura do que um dia suscitou ao menos respeito. Aos poucos se acalma, bebe mais água. Silencia.

O colorido segue. Está vendo? Esse estado de coisas não pode continuar. Ele está indo pro rebaixamento de novo. Isso é justo, é certo? Meu amigo rebaixado enquanto os mulambos festejam? Precisamos de um pacote ainda mais forte, mais pesado, mais decisivo, mais definitivo, mais...

Um momento, corta o velho. Eu avisei, não avisei? Falei que o Rainbow Prime faria eles se organizarem. Falei, preveni, que forças poderosas seriam mobilizadas, que a instituição acordaria de sua letargia e se reergueria. Vocês, gananciosos, toparam, ignoraram minha advertência. Tiveram seus três anos, deitaram e rolaram, ganharam tudo enquanto o lado deles penava com a nadadora, o tricolete e o catador de camisa. Só que eles reagiram. Falei que eles iriam reagir, se rearrumar. A encomenda de vocês interferiu no curso de fenômenos naturais muito fortes. Agora aguenta. Sinto muito, não posso fazer nada. Há um processo em curso, e não tenho como interferir. Outra coisa, não é só seu amigo que pode ser rebaixado. Acho bom tu te lembrar do Serra, do São Raimundo...

Serra não, Serra não..., treme o colorido.

Então é assim? Campeão e pronto? No seco? E a gente fica aqui parado, chorando? Eu sabia, eu sabia, tava bom demais, tinha que dar errado...o senhor estrelado puxa o lenço e começa a soluçar.

O velho retruca (isso vai ficar divertido), só se for você, ô gamela. O que você queria? Acha que o mundo se resume a Garrincha, Heleno e Patesko? Que ainda estamos no tempo do Vargas? Que vocês ainda têm torcida? Acabou, filho. Tempo passou. Vocês foram alguma coisa, hoje não passam de um flanelinha das glórias alheias, cavaleiro de prados guaranis, migalhando um carioquinha aqui e ali. E vou te dar um conselho. Pare de jogar dominó com seus amigos ameriquinhas, você vai acabar ficando igual a eles.

O choro se torna mais histérico, o que irrita o rapaz colorido. Peraí velho, você não pode sair nos destratando assim. Somos grandes, temos história, juntos somos maiores e melhores que aqueles mulambos, eu mesmo, na qualidade de principal representante do Rio...

Fica na tua, ô floridinho. Principal é o meu ovo. Olhe pra você. Todo cheio de pompa, de conversa bonita, de querer ser o que não é. Vive atrás de um gigolô pra bancar seus delírios, às vezes consegue arrumar um otário. Mas a casa tá caindo. Agora taí, o Serasa batendo na tua porta, cobrando boleto antigo. E você preocupado com o Flamengo. Grana acabou, né, filho? Engrossa essa voz e anda como homem, porra! Esquece o Flamengo. Vai cuidar da tua passagem pra Juazeiro, Varginha, Chapecó (epa, Chapecó agora é elite, risca...)

Ah, velho mau, velho vendido, velho do esquema, do...! O doido descabelado volta a guinchar.

Ah não, B! (o velho parece visivelmente à vontade com isso). E você? Vive, anda, respira Flamengo. Sua felicidade é a derrocada deles, só pensa neles. Tem sede de Flamengo, sede, muita sede. Virou um fiapo, sua obsessão lhe sugou toda a energia, a dignidade. Arrasta-se uivando “Mídia, Globo, FBI, complô...” pelas vielas e becos. Você não existe mais.

Eu só queria... voltar a ser vice... murmura e some.

Minha Nossa Senhora do Morumbi, que espetáculo deprimeeeeeente, desmunheca o rapaz do blazer, até então calado. O que estou fazendo aqui, ouvindo esse velho desancando a todos? Que deselegante, tão Terceiro Mundo isso... Deveria ter ficado em casa, desmarquei meu podólogo! Ai, que frustraaaante...

Ué, e veio por que, então?

É que mandei buscar um vidente que usava técnicas romenas de prestidigitação, coisa avançada, muito tudo, Europa toda aderiu, sabe? Aí pedi a ele pra indicar o caminho, o cenário, porque esse ano foi meio chato, abafa, abafa. E começaram a aparecer umas letras soltas, e aí subiu uma fumaça negra, um brilho lá, e enfim veio uma mensagem, que o moço disse que era “a palavra do oráculo”. Dizia, “Lasciate ogni speranza, DCF CRF”. Ele disse que o oráculo não falhava. Fiquei bege, passaaaaaado. Aí me falaram desse Pai Bilu aí, e resolvi escutar uma segunda voz. E agora estou aqui, nesse pardieiro imundo ouvindo essas coisas, ai que humilhaaaante!

Pai Bilu é a PQP, biba! Você é outro que só quer saber de Flamengo. Todo cheiroso, limpinho, arrumadinho, cheio de goma, destila a mais torpe das invejas. Denomina-se “O Mais Querido”, chama seus jogadores de “Deus da Raça”, rouba taças. Usurpa. Intriga. É protagonista sem protagonismo, estrela sem palco, líder sem carisma. Não tem aplausos, não lhe repercutem, não lhe amam. No fundo, sonhas com a mão forte e viril, o grito gutural “É Flamengo, porra” lhe invadindo os ouvidos e as entranhas. Ah, e cuidado. Outros anos “meio chatos” deverão aparecer na sua vida.

O rapaz já arfa, arrepiado, e antes que esboce resposta o último dos visitantes enfim resolve se manifestar. Não sem antes cuspir no chão.

Muito bem vovô, já deu o seu show. Vamos resolver essa treta, e é agora. Venha aqui no canto.

Mesmo incomodado com o tom autoritário do sujeito, Leru acede, já parece cansado. Agora estão sós, na cozinha. O sujeito começa a falar, num tom agressivo e intimidador.

A treta é a seguinte, mano. Vamos botar a real na fita. A real é a grana, meu. Tenho grana. Muita grana.

E nisso abre um bolso lá da calça, dele retirando maços e maços, uma visão que faz cintilar os olhos do velho, que pensa, eu depenaria esse pato fácil fácil, mas é melhor não, dizem que ele já comprou jogadores, juízes, campeonatos, estádios, que anda com gente da máfia, melhor não arriscar.

O “mano” prossegue. Então, gostou, velho? Ajeito mais, muito mais. Só você fazer o trabalhinho e tirar os caras da reta. Isso deles ganhando coisa não é legal. Atrapalha minha treta. Esquece aqueles buchas lá da sala. Tudo bagrinho. Aqui você tá falando com o todo-poderoso, o maior de todos, tenho a maior torcida, maior time, maior estádio, sou o mais valioso, sou o mais lembrado, o mais...

Sei, interrompe o feiticeiro, visivelmente irritado. Guarda essa pluri-cascata lá pro teu pessoal do Belenzinho, que gosta de se lambuzar com toda a merda que lhe jogam na cara. Aqui, não. Aliás, não tô vendo todo-poderoso nenhum. Tô vendo é um cascateiro picareta que se ajeitou com alguns parceiros certos e anda tendo um brilhareco aí de fim de semana. Chefete de aldeia com delírios de superioridade. Emergente. Não tens traço da grandeza, da história, da tradição, do carisma e da representatividade nem de alguns dos teus colegas, e quer falar do Flamengo. Fora da tua casa, te ignoram, te desconhecem e riem da tua cara. Já que é pra “mandar a real”, agora é minha vez. O que vem, vai. Aliás, 2014 vai ser divertido pra ti, não? Tanto jogo internacional, não é mesmo? Araras, Taquaritinga...

O “mano”, enfurecido, ensaia puxar o canivete, mas antes disso o velho grita algo como “shavurzka nabritchska empalala futut”, e a arma se desfaz em pedaços. Assustado, volta para a sala.

Vamos embora, aqui não há o que fazer.

Antes de despedir os visitantes, o velho ainda dá o último recado, não adianta virem aqui. Não há como interferir, agora é a natureza trabalhando. Se os flamengos continuarem mobilizados e organizados, uma nova Era pode estar se iniciando, gostem vocês ou não. E enquanto estiverem unidos, essa zuadeira aí de fora vai ser cada vez mais frequente. E não vão parar só em Copa do Brasil. Agora, sumam.

Enquanto os vultos praguejantes vão sumindo nas vielas apertadas, Leru volta a ligar a televisão. A festa do título ainda está lá, insistente. O velho senta e agora resolve prestar certa atenção no estádio que pula, nos jogadores que festejam, na taça que dança nas mãos suadas dos heróis da conquista.


E é nesse exato momento que, sem perceber, Pai Leru se permite um leve sorriso.