“As vacas
estão gordas.”
A frase
do cupincha saiu assim, direta, seca, de uma sinceridade quase infantil, sem
qualquer pudor ou receio, revestida por uma robusta camada de espontaneidade, o
descompromisso dos que se acreditam impunes, eternos, inatingíveis. É meio
recente, coisa de um e meio a dois anos atrás.
“As vacas estão gordas.”
Aí
estava, estampada com toda sua cortante crueza, a melhor definição para o
último triênio vivido pelo CR Flamengo, assolado pela mais devastadora das
tempestades, o mais medieval dos momentos obscurantistas, a mais iníqua das
noites, a pior página da história recente e não tão recente da mais que
centenária instituição.
“As vacas
estão gordas”. Não havia mais o que falar, o que explicar, o que traduzir.
Até que
um dia isso chegou ao fim.
Porque o
Flamengo cansou de ser espoliado, está farto de manter escancarados os acessos
para que diferentes atores recheiem seus largos alforjes, resolveu reter para
si o que lhe é de direito, afastando do processo toda sorte de comensais,
cracas e outros parasitas, está se erguendo do amplo tapete de feno onde
permaneceu deitado por décadas, mamilos expostos ao alto, úmidos, fartos,
sempre escorrendo abundante e caudaloso o fácil e interminável néctar de um
paraíso onde há espaço para todos os amigos de reis, príncipes e até vassalos.
O
Flamengo cometeu o supremo crime de querer ficar com o que lhe é de direito.
Praticou
o grave delito de se pretender forte, pujante, progressista, inovador, de
exercer o protagonismo para o qual foi forjado desde os tempos da República Paz
e Amor. Um Flamengo prenhe de vida própria ofende, agride, é um murro na cara
dos mais renitentes vanguardistas do atraso, é um tapa na orelha dos que ora
não mais dispõem da locupletação, do patrimonialismo, do escambo, da untuosa
rede de favores, do “sabe com quem está falando”.
Daí há
reações.
A
estridência de setores da mídia impressa, falada e televisada que, movidos por
ódios políticos, pessoais, picuinhas geradas pela perda de privilégios a soldo
ou mesmo simples aversão à instituição, intrigam, garimpam o tumulto, espremem
factoides dia sim, dia também, quando simplesmente não travestem veleidades em
verdades, espancando uma realidade fática que, ao lhes ser exposta em carne
viva, os ofende, deprime, tripudia. Ou os protestos alaranjados, faixas no
miolo de torcidas, ameaças, coações, agressões físicas, entre outras
manifestações de um amplo arco de resistência composto pelos mais diversos
setores que, historicamente, sempre vicejaram à sombra de relações
institucionais fluidas, molentes, derretidas por redes pessoais vaporosas e
volúveis como a rodada do fim de semana.
Essas não
são facetas expressivas de reação. Desgastantes, fato, mas incapazes de criar
instabilidade, porque apenas refletem o uivo desesperado e esganiçado dos que
se debatem inconformados com a inexorabilidade de seu melancólico desenlace,
imersos na lama e no esterco que abarrota as latas de lixo da história.
Apenas
estrebucham.
Diferente,
bem diferente, é o que se presenciou na semana próxima passada. Que não é
irrelevante. Não é inexpressivo. Não suscita despreocupação.
O que se
viu, viveu e relatou é aviltante. Revoltante. Indigna. Envergonha.
Os
motivos podem ser diversos. Política, ou no caso, politicalha interna, reação
de setores talvez incomodados pela virtual perda de faturamento no ancestral
cambismo, logo no mais rentável jogo do ano, necessidade de surfar no raso
populismo dos anos 50, ou simplesmente a anabolização de alguma polêmica que
ajude a vender jornais.
Mas nada,
absolutamente nenhuma justificativa valida a deprimente pantomima exposta nas
dependências do CR Flamengo e fora dele, onde órgãos de estado foram
aparelhados para funcionar a serviço do mais repugnante proselitismo político, operando
ao sabor de pageviews e índices de audiência, escravo de um “senso comum”
imposto e motivado por diferentes apetites.
Foram
estapeados os mais basilares princípios de funcionamento das leis do mercado,
os mais viscerais mandamentos do Direito Constitucional, adotaram-se práticas
que remetem aos mais nefandos momentos da Gestapo, da Stasi, da Pide. Tomaram
de assalto um domicílio privado, tentaram saquear documentos estratégicos,
sequestraram um dirigente ao mais fulgurante arrepio da lei.
Ao
pretexto de se preservar um pretenso “interesse público”, pisotearam-se todos
os princípios que norteiam a conduta de agentes de Estado. Porque ingressos de
espetáculos de lazer que detenham atributos diferenciados são comercializados a
preços diferenciados desde que se chuta uma bola, se abre uma cortina de teatro,
se apresenta um músico. No entanto, a partir do momento em que o CR Flamengo
resolve, pela primeira vez em sua história, cobrar em uma decisão um preço
compatível com a realidade de mercado (talvez até ainda ABAIXO da mesma, haja
vista o praticado por outros clubes em recentes decisões em território
nacional), abre-se todo um arco de descontentes que, movidos por interesses
diversos, aliam-se a toda uma fauna de frustrados oportunistas que fazem com
que uma questão privativa de mercado seja alçada a um tablado para que
arlequins do Direito Público entoem obsoletas cantilenas com suas vozes
roufenhas em busca do aplauso fácil. No entanto, ao invés das palmas, suscitam
apenas indignação e estarrecimento. Nossa democracia mal nasceu, já agoniza.
É o
momento do CR Flamengo e de nós, seus torcedores, que buscamos a consolidação
do processo de reerguimento pelo qual atravessa a instituição, mantermo-nos
solertes e atentos ao que motiva os movimentos de determinadas personagens e de
seus paus mandados, estejamos sempre prontos a denunciar e a reverberar
quaisquer tentativas de manter o clube imerso em um atraso que sempre se
revestiu conveniente aos interesses de muitos dos que hoje gralham em “defesa”
de ideias que nem sabem ao certo quais são, vestais da causa própria.
O CR
Flamengo é a mais expressiva instituição esportiva do país. É do sacerdote, da
puta, do magistrado, do favelado, do menino, do idoso, da empresária, da dona
de casa, do pivete, meu e seu. E todos, sem exceção, queremos ver um Flamengo
forte, protagonista, vencedor.
Não mais
o Flamengo do assecla, do comparsa, do amigo.
(em
tempo: cuidado. Ainda podem querer meter a mão na arrecadação da final. Sempre
existe uma penhora inesperada, um protesto, uma ação qualquer. Que o jurídico
do clube se mantenha atento).