Saudações
flamengas a todos. Quem acompanhou o recente berreiro dos goianos indignados e
buscando subterfúgios para mascarar o simples fato de terem sido brutalizados
em casa novamente se deparou com a já conhecida incapacidade dos adversários
flamengos desenvolverem luz própria. Isso me faz trazer uma história
absolutamente deliciosa, ocorrida na esteira da conquista do Mundial, em 1981.
Uma passada de recibo colossal, monumental. Bem, ao texto. Boa leitura.
* * *
O Rio de
Janeiro nunca esteve tão lindo.
A cidade
sorri, brinca, festeja, celebra os seus heróis que retornam altivos, impávidos,
vencedores, campeões.
O
Flamengo é o campeão do mundo. O Flamengo é o melhor time do mundo.
Não há uma
esquina, uma viela, um beco, uma tasca, que não traje negro e vermelho, que não
comente os feitos dos mitológicos gigantes flamengos, que não vista ares de
divindade em um Lico, um Tita, um Andrade. O Rio, o Brasil, porejam a delícia
estampada na cara de quem sabe a alegria de viver e ser rubro-negro.
Equipes
do mundo todo enviam telegramas ansiosos à Gávea buscando a marcação de
amistosos. O Barcelona propõe duas partidas, no Rio e na Espanha, mas o
Flamengo rejeita, por falta de datas. África, Ásia, Europa, todo o planeta quer
ver os Globetrotters da bola de perto. E o Flamengo, num malabarismo de datas,
vai agendando o que consegue, na Itália, nos Estados Unidos, na América Latina.
Só se
fala Flamengo, só se vive Flamengo, só se festeja Flamengo, uma ilha de
prosperidade, eficiência e competência em um país cujo contexto é a eternamente
fracassada busca por um futuro que jamais sorri.
Mas há
quem se incomode.
Alguns
dirigentes esbaforidos, talvez esmagados pela massacrante, verborrágica e despudorada
demonstração da grandeza flamenga, começam a trocar telefonemas frenéticos
entre si, buscando uma saída, um antídoto, um fiapo tremeluzente de luz que
possa lhes acalentar a mais tépida esperança de reação.
Após
alguns contatos apressados, enfim conseguem se agarrar a uma ideia. E, por
telefone mesmo, chegam à decisão final.
Está
criada a FAF (Ops, FAF não pode, a sigla já existe).
(Vamos
recomeçar, então. Vai sem sigla mesmo). Está criada a FRENTE ANTI-FLAMENGO.
Todo o
arranjo é coordenado pela diretoria do Fluminense, que idealiza a iniciativa.
Botafogo, Vasco e depois o América aderem, a princípio com entusiasmo. O mote
do movimento é criar um bloco de clubes que atue em conjunto, no sentido de
frear a esmagadora hegemonia do Flamengo “dentro e fora de campo”.
Para isso,
irão votar sempre alinhados em qualquer questão relevante em Tribunais e
Conselhos Arbitrais, e preferencialmente adotando posição contrária ao que o
Flamengo defender (aqui o que importa é desafiar o interesse do Flamengo).
Também negociarão somente jogadores entre si, vedando terminantemente qualquer
venda de atleta ao Flamengo. Vetarão árbitros, jornalistas e outras
personalidades que manifestem, abertamente ou não, qualquer forma de simpatia
ao rubro-negro. Enfim, a ideia é tentar alguma forma de, unidos e parelhos,
exorcizar a já constrangedora supremacia flamenga que se espraia desde 1978.
Com
efeito, o Flamengo, desde então, terá conquistado 18 troféus oficiais em 24
disputados, em âmbito regional, nacional e internacional. Não é fácil,
definitivamente, não ser Flamengo.
E os
quatro rivais vivem mesmo tempos difíceis. O Fluminense atravessa grave crise
por conta do estouro da bolha da administração Horta. O Botafogo está entrando
no auge de um profundo processo de caos financeiro e administrativo decorrente
da incapacidade de lidar com o fim dos áureos anos 60. O América começa a
sentir na carne o apequenamento de sua outrora expressiva torcida. E apenas o
Vasco parece ainda dispor de algum fôlego para conseguir amealhar não mais do
que um punhado de vicecampeonatos, como o Brasileiro de 1979 e o pentavice
estadual.
O momento
é agora, não dá mais para esperar.
A
primeira reunião é marcada, a ideia é divulgar e definir os ideais do grupo. O
Flamengo é expressamente citado no ato da convocação, é a razão plena de ser da
criação da Frente.
Mas algo
dá errado.
Os
dirigentes, perto do horário marcado para a reunião, batem cabeça e
simplesmente não conseguem confirmar suas presenças. Um deles alega “cansaço de
viagem”, outro se demora demais em uma reunião com jogadores, outro “se lembra”
que justo no horário da reunião tinha que participar de um comício. E a
reunião, sem ser sequer desmarcada, simplesmente não acontece.
Mesmo
assim, não desistem.
Resolve-se
esquecer isso de reunião. Preferem agora tratar das trocas de jogadores entre
si, para “reforçar mutuamente as equipes, eliminando-lhes os pontos fracos e
assim criando condições de se montar esquadras mais fortes e capazes de fazer
frente ao Flamengo.”
E começam
as tratativas. O Fluminense topa negociar qualquer um, menos a estrela da
companhia, Edinho, que já tem amarrada sua venda para a Itália depois da Copa.
O Vasco possui alguns nomes incompatibilizados com o treinador Antonio Lopes
(como Silvinho, João Luís e Renato Sá), mas só quer trazer jogador que tenha
condição de ser titular (de preferência, ex-Flamengo). O América tem no seu
goleiro Ernani e no zagueiro Heraldo suas principais moedas de troca. E o
Botafogo, bem, o Botafogo aceita comprar e vender quem aparecer pela frente,
desde que não tenha que pagar nada.
E nem
isso prospera.
Ao se
iniciarem as tratativas, logo os dirigentes descobrem que não será possível
realizar as trocas. Descobrem, consternados, que o Fluminense, apesar de cinco
anos absolutamente pífios (salvo o hiato de 1980), ainda paga os maiores
salários do Rio de Janeiro aos seus jogadores (quando paga). Que um titular do
Botafogo recebe menos do que um tricolor recém-promovido da base.
Evidentemente, os jogadores tricolores consultados para uma eventual troca
mostram-se frontalmente contrários à ideia, bem como os clubes não aceitam
nivelar salários tão artificialmente inflados. Além disso, Botafogo e América
já vinham com negociações adiantadas com clubes de fora do Rio, e não querem
perder o fechamento dessas transações. E o Vasco parece mais preocupado em
conseguir a contratação do ex-Flamengo Rondinelli, que vem de passagem apagada
pelo Corinthians.
Assim, de
forma quase tão anônima como surgiu, a Frente Anti-Flamengo é extinta, tendo
durado pouco mais de três dias, tempo de vida que talvez ilustre a sagacidade,
a firmeza de propósitos e a efetividade dos seus membros, provavelmente sendo
refletido, portanto, no desempenho de suas equipes nos últimos anos.
Enquanto isso, na Gávea, o alto comando Flamengo, ao ter conhecimento da ideia, explode
em gargalhadas, e também resolve dar sua contribuição.
“Acho que
eles deveriam se fundir. Todos eles, os quatro. Talvez assim o Flamengo tenha
um adversário com condições de exercer uma resistência mínima. Se bem que não
creio nisso. Estivemos, estamos e sempre estaremos na frente deles, juntos ou
separados.”
O único
resultado prático da fracassada Frente é a transferência do atacante Cláudio
Adão para o Vasco. Ironicamente, no segundo semestre, o clube, com problemas de
caixa, venderá o arisco ponta-direita Wilsinho, um de seus principais
jogadores, para o... Flamengo, que também tirará do Fluminense o ponta-esquerda
Zezé e, pouco mais tarde, o seu craque restante, o ponta-direita Robertinho.
Sim, a
esmagadora, sufocante e quase inverossímil ciranda de títulos flamengos será
levada a termo em alguns anos, voltando a um ritmo mais, digamos, normal. No
entanto, os efeitos já estarão indelevelmente marcados, cravados e estampados
no âmago da existência de todos os clubes não-flamengos, suprimindo-lhes de
forma definitiva e irreversível todo e qualquer resquício de altivez, orgulho e
expressão própria.
Terão se
tornado, de forma ou outra, meros satélites.