1980.
Gávea.
Os
últimos e renitentes vestígios de luz ainda se debatem esganiçados, mas a
escuridão, lenta e implacável, já permeia a sede flamenga, agora em
franca desmobilização depois de mais uma festiva e concorrida tarde de
treino.
Domingo
tem jogo decisivo, contra o Vasco. O Flamengo precisa vencer para
ainda sonhar com o tetra.
O
presidente, atento, havia acompanhado toda a atividade e, satisfeito,
constatara que o bom astral estava de volta, após Coutinho, em um
último esforço, ter reformulado a equipe, barrando Luís Pereira,
Carpegiani e Nunes, o que tornou o time mais leve e incisivo. A
última vitória, contundentes 4-1 em Campos, mostrara que a decisão
de Coutinho havia sido acertada. O time, confiante, apregoava pressão
incessante e vitória sobre o arquirrival.
Absorto
em conversas periféricas com alguns membros do seu staff, o
presidente mal repara quando um senhor, de estatura mediana, vestido
de forma simples, o aborda algo esbaforido, abrupto.
“Seu
presidente, eu sou torcedor, vou a todos os jogos, chuva ou sol, e eu
queria lhe fazer um pedido.”
Já
acostumado a esse tipo de demanda, o dirigente ensaia seu sorriso
mais afável, põe a mão no ombro do torcedor e retruca,
“Entendo,
entendo, você quer a camisa do Zico. Mas infelizmente, no
momento...”
“Não é
nada disso, meu presidente. Não quero nada pra mim, não. Só quero
que o senhor ajeite uma coisa que tenho certeza que o senhor pode
fazer.”
Cenho
franzido, e agora tomado de genuína curiosidade, o presidente vai
deixando o torcedor falar.
“Então
me diga”
“Sabe o
que acontece? Eu queria que o senhor mandasse o time jogar domingo
com o nosso uniforme antigo. Aquele listrado fino, calção branco e
meia listrada. Nada contra esse novo, até é bonito. Mas dá um azar
do cão. Depois que começamos a usar, não ganhamos mais nada.”
Meio sem
jeito, o presidente desconversa, torna a empolar seu sorriso
acolhedor e despacha o agora inoportuno torcedor com frases como
“ganharemos com qualquer camisa”, “quero ver você no Maraca”,
“pensamento positivo”. E já começa a tomar o rumo do gabinete
quando um dos seus assessores, que apenas assistia ao inusitado
diálogo, dá seu inquietante parecer.
“O
pior, presidente, é que ele tá certo...”
* * *
Em
uma das mais polêmicas medidas da temporada, a diretoria decide
reestilizar o uniforme da equipe, que vinha sem maiores alterações
há mais de sessenta anos. O desenho do novo modelo (a cargo da
esposa do presidente, estilista), concebido na esteira do título
brasileiro, é cuidadosamente pensado para transmitir a impressão de
modernidade, quebra de padrões, mas ao mesmo tempo não perder algo
da identidade do clube. Saem de cena as listras estreitas e o tom
vermelho escuro, entram listras largas, um vermelho mais vivo, um
escudo reestilizado, que formam um realce bem mais vivo nas
transmissões da tevê, identificando de forma única e indiscutível
o “produto” Flamengo. E, a mais polêmica de todas as mudanças,
os calções passam a ser negros e as meias brancas, abandonando-se
assim o tradicionalíssimo arranjo de calção branco e meia listrada
de anos e anos. No entanto, a nova combinação faz com que o
futebol, pela primeira vez em sua história, utilize um uniforme
exatamente igual ao do remo, inclusive nas cores de calções e
meiões.
O
segundo uniforme também sofre alterações, com as listras
rubro-negras passando para as mangas, e se adotando um conjunto
totalmente branco.
A
receptividade é a mais controversa possível. O novo modelo é
nitidamente mais bonito e moderno que o anterior, mas parece faltar
algo.
A
estreia deveria acontecer na disputa da Taça Guanabara, torneio
disputado à parte do Estadual. Mas uma falha da fornecedora de
uniformes na confecção do primeiro lote faz com que o Flamengo
dispute a competição com o uniforme antigo. E com a “roupa velha”
mesmo o rubro-negro atropela seus rivais e chega invicto para a
última rodada, precisando de um empate com o Vasco. O uniforme
branco já está pronto e é usado na decisão, em que o Flamengo
arranca um suado 0-0, garante o título e viaja para a Europa.
E
é em gramados espanhóis que o Flamengo enfim estreia seu novíssimo
uniforme rubro-negro, no Torneio Teresa Herrera, em La Coruña. No
entanto, em um vexame de proporções bíblicas, o time (desfalcado
de Zico) chega na última colocação, após duas partidas
desastrosas (empate em 1-1 e derrota nos pênaltis para um Gijón com
nove e derrota por 1-4 para o Porto).
Péssimo
presságio, já cravam alguns.
A
temporada segue, o Flamengo (já com Zico de volta) recupera seu
prestígio, vence dois torneios na Espanha, repatria Luís Pereira e
Fumanchu (dois jogadores de seleção), entra no Estadual com status
de franco favorito ao tetra, mas alguns titulares caem de rendimento,
Luís Pereira não encaixa de imediato, o time perde pontos
importantes e pela primeira vez desde 1978 perde um turno em
campeonato regional. Ensaia recuperação no returno, cai novamente
de rendimento e parece que vai ficar pra trás, quando Coutinho
intervém de forma mais agressiva, barra alguns “intocáveis”
(inclusive Luís Pereira) e o time melhora, chegando à reta final
para o jogão contra o Vasco.
*
* *
Sabe-se
lá se por coincidência ou não, após o "apelo" do torcedor ao presidente o Flamengo entra de branco para
enfrentar o Vasco e o derrota (2-0) em uma atuação de gala. Quando
o tetra parecia roçar os dedos flamengos, vem o desastre de
Petrópolis e a eliminação precoce. Termina temporada, começa
temporada, Coutinho sai, Modesto Bria assume como interino, não
consegue acertar o time (que sofre com desfalques importantes por
conta das Eliminatórias), sofre algumas goleadas inesperadas e
contundentes, Dino Sani assume, melhora o padrão de jogo mas não
evita as turbulências que deságuam na traumática eliminação do
Brasileiro, e o clube, um ano depois da conquista de seu (até então)
título mais importante implode em crise.
Naturalmente,
a culpa é do uniforme.
A
volta ao uniforme antigo vira assunto de eleição. O candidato das
oposições fala abertamente em aposentar o modelo novo caso seja o
vencedor, mas a vitória da situação adia o assunto. Com a perda do
Brasileiro, as vozes a favor da volta da “tradição” engrossam e
assumem um tom não mais possível de ser ignorado. Mesmo membros da
diretoria defendem o fim de um modelo “comprovadamente inovador,
moderno, bonito e azarado”.
Enfim,
a solução. Conversa daqui, articula dali, cochicha de cá, ajeita
de lá, e o arranjo que agrada à maioria. O Flamengo mantém o
modelo de listras grossas, mas volta a usar os calções brancos e as
meias listradas que fazem parte de seu uniforme desde quase sempre. E
ninguém mais fica triste.
A
combinação, já usada em um empate no Mineirão contra o
Atlético-MG pelo Brasileiro (0-0), estreia em jogos oficiais em
Petrópolis, contra o Serrano, em meio às tensas negociações para
a permanência de Zico no Flamengo. O rubro-negro vence com
facilidade (2-0), parte para a conquista da Taça Guanabara (agora
sim, novamente fazendo parte do Estadual) e a história vai terminar
em Tóquio.
E
nunca mais se falará em mexer no uniforme.
*
* *
(PS
– nunca mais, vírgula. Em 1991, novamente se encomendou uma
reestilização da roupa flamenga, dessa vez ainda mais ambiciosa. A ideia
seria vestir da mesma forma todos os esportes. No entanto, o desenho
final resultou ainda mais polêmico que o de 1980. Camisas totalmente
pretas com frisos vermelhos, calções pretos e meias brancas.
Uniforme extremamente bonito, mas completamente fora de um contexto
histórico e de identidade. Conselheiros e associados se uniram,
ações judiciais ameaçaram pipocar e a diretoria recuou. Felizmente).