O calor é
infernal.
Todos
transpiram. Todos os que se espremem e se acotovelam em busca de alguma mínima
nesga de cimento onde possam se acomodar e, transidos de ansiedade, aguardar a
espera do apito que em breve soará o veredicto inapelável, inexorável.
O abismo
está à beira. Ao alcance de um simples, mero, prosaico e banal empate.
Como que
prevendo o pior, o Flamengo, num ato que recende ao vão desespero dos
extremo-ungidos, abandona seu palco de tantas vitórias e glórias e vai se
apequenar em um “alçapão” de interior, procurando dispor de uma torcida
aguerrida e hostil, quem sabe vencer “na marra” antes do suspiro derradeiro.
Ou
simplesmente fugir. Tentar tornar o vexame algo menor, anônimo.
A
situação é amplamente dramática. A equipe se arrasta sem rumo, sem reação, sem
brio, sem nada, soterrado há vinte e quatro torturantes rodadas na região dos
quatro piores times, os eleitos à conspurcação, à degola física e moral, ao
enxovalhamento absoluto de qualquer resquício de honra e dignidade.
Indiferentes,
os jogadores dedicam-se a fustigar-se mutuamente em guerrilhas de vaidades onde
os interesses da instituição são simplesmente ignorados. Patotas, grupos,
panelas vicejam como fungos e carcomem todo e qualquer sopro de disposição
contido na vontade férrea do veterano mestre, que, com sucessivas rodadas de
atraso, enfim desiste e entrega seu boné.
Agora
faltam três jogos. Partidas dificílimas, contra alguns dos melhores do país.
Qualquer tropeço é a morte, o fim da agonia de uma torcida já condenada ao
rebaixamento prévio há meses.
Sem
opção, recorre-se a um nome conhecido. Um curandeiro. Um bombeiro.
Sem que
um mísero treinamento seja comandado, o grupo é reunido, uma longa conversa,
algumas declarações bombásticas, uma fala mais grossa aqui, um outro grito ali
e, entre alguma dose de otimismo, um mínimo de esperança e muito ceticismo, o
time está pronto para a primeira batalha. O adversário está nas primeiras
colocações, vem praticamente completo e seu retrospecto recente contra o
rubro-negro é totalmente favorável.
O alçapão
está cheio. Pleno, repleto, exala o fanatismo dos que acreditam, que têm fé.
Contra todas as expectativas, todos os prognósticos, todas as sentenças,
simplesmente têm fé. Creem na salvação apenas porque amam e acreditam na força
do Flamengo, de alguma forma sabem que, nos estertores, a salvação, a reviravolta,
a ressurreição virá. E, mais uma vez, o clube se erguerá altivo, orgulhoso,
forte.
E o calor
é infernal.
* * *
Dentro de
campo, todos suam. O suor de alguns ferve de calor, de cansaço. Outros suam
gelado, de nervosismo, de medo.
Menos o
garoto.
Calmo,
frio, o jovem exprime vivacidade apenas em seus olhos agudos, que espreitam a
autoconfiança do adversário, a apática ansiedade de seus colegas, ajuntamento
que compõe tudo, menos um time. Taciturno, não fala. Não sente o menor sinal de
receio. Parece tomado de estranha tranquilidade, com a certeza de que hoje
viverá um dia especial. Seu dia.
Mesmo sem
jogar.
A partida
começa, o Flamengo, com o ânimo injetado pelo novo comandante, parte com
coragem, de “peito aberto”, tenta sufocar o oponente, perde algumas chances,
beija a trave. O adversário, mais calmo, não se abala e aos poucos começa a
controlar as ações da partida. Para o oponente, o empate serve. Para o
Flamengo, é a morte.
A
atmosfera é densa, pesada, sufocante. Todos sentem o calor, a pressão, o
nervosismo.
O
treinador reclama, brada, esbraveja, conversa com os auxiliares. Olha para os
reservas, vários viram a cara, evitam o olhar confrontador.
Menos o
garoto, que não lhe desvia os olhos suplicantes e determinados.
Desde
cedo, o jovem já mostrava personalidade e petulância. Nos treinamentos com os
profissionais, nunca foi de tirar o pé, e nem alguns esbarrões preventivos dos
mais experientes o intimidavam. Xingava e gritava como se capitão fosse, isso
em treinos. Lançado quase como um último recurso no jogo anterior, foi bem em
campo, um dos poucos a se salvar da acachapante derrota. Mas o novo treinador,
sem conhecer direito o elenco, preferiu recorrer aos mais rodados, aos mais
velhos.
O garoto
não se incomoda. Está ali. Pronto. Mentalmente joga junto, parece completamente
concentrado e absorvido com a partida. Não conversa com ninguém, nada fala.
Mas seus
olhos faíscam de fome.
Muitos
parecem tremer diante do oponente, que agora cresce no jogo e já mantém o
Flamengo longe de sua área. Time qualificado, treinador consagrado, apenas não
podemos nos humilhar, pensam alguns, inclusive nas arquibancadas.
Mas esse
não é o Flamengo do garoto, que cresceu ouvindo as histórias do Flamengo de
Zico, do Flamengo campeão do mundo, que viu o Maestro Júnior esmerilhar a bola
e fazer do Flamengo o maior, viu os meninos de Carlinhos subjugarem todo um
país. O Flamengo do garoto não tem medo de ninguém. O Flamengo do garoto é
capaz de passar por cima de qualquer adversário, em qualquer campo, qualquer
situação, quaisquer que sejam as circunstâncias.
O garoto
enxerga o adversário e apenas vê onze potenciais presas prontas para o abate.
Sente ferver-lhe o sangue, transir-se de inconformismo e uma inexplicável
vontade de cravar os dentes ao pescoço daquele rival petulante, que toca uma
bolinha indolente, julgando-se inatacável. O garoto quer sangue, quer dançar
nos despojos e nas vísceras expostas de um inimigo que ele clama por
exterminar, destruir.
O jogo já
vai pelo segundo tempo. O adversário, nitidamente superior, possui pleno
domínio das ações e prepara o bote final. Desnorteado, o treinador percebe que
precisa mudar o quadro, precisa agir, e rápido. Mas, conhecendo poucos, não
terá como distinguir qual daqueles jovens anônimos estará preparado para mudar
o jogo.
“Põe
ele”, o experiente goleiro reserva aconselha ao ouvido do comandante, apontando
para o garoto de olhar febril.
Sem dizer
uma palavra, o garoto olha fixamente para o treinador e se levanta.
Felipe
Melo vai começar o aquecimento.
“O
Flamengo derrotou o Internacional em Juiz de Fora por 1-0, com um gol de cabeça
de Felipe Melo, resultado considerado fundamental para a briga contra o
rebaixamento em 2001, pois deixou o time a três pontos da salvação, conseguidos
na última rodada, quando venceu o Palmeiras, também em Juiz de Fora, por 2-0. O
time encerrou o campeonato na 24ª colocação, exatamente à frente dos quatro
rebaixados.”