Saudações flamengas a todos. Hoje, espírito mais leve,
deixo uma história despretensiosa. Especialmente para quem acha que Bujica e Nélio foram os únicos
heróis anônimos de um Flamengo e Vasco. Boa leitura.
1939.
O carioca, em um cinzento março de pré-guerra, anda saudoso
de futebol. O campeonato da cidade terminou em janeiro, há mais de dois meses
não há qualquer partida oficial. Daí o alvoroço quando da divulgação da
notícia, que informa que Vasco e Flamengo abrirão a temporada com um clássico
em São Januário.
A torcida do Vasco, especialmente, anda motivada para
enfim encerrar o jejum de dez anos sem títulos sem asterisco (nesse período,
conquistou dois campeonatos nos anos de cisão entre amadores e profissionais).
O clube abriu a carteira e trouxe do Ferrocarril os argentinos Dacunto, Emeal e
Gandulla, que, teoricamente, irão suprir lacunas importantes em seu elenco, em
que já figuram bons jogadores como Argemiro, Alfredo, Jaú e Niginho, todos de
seleção. A finalidade do amistoso contra o rival maior é justamente apresentar
esse novo time para a sua torcida.
Pois o jejum flamengo é ainda maior que o cruzmaltino.
Sem conquistar um campeonato desde 1927, o rubro-negro vive a maior escassez de
títulos de sua história, atingido em cheio pela briga entre profissionais e
amadores. Um vigoroso trabalho de reestruturação, baseado na construção de sua
sede, arregimentação de novos sócios, contratação de jogadores de peso (mesmo
em baixa) e estruturação do recrutamento de jovens enfim reergue o clube, e o
time de futebol já se aproxima bastante do tão almejado título, evoluindo ano a
ano. O Flamengo possui craques como Leônidas e Domingos, além de nomes úteis e
de qualidade, como Válter, Médio, Volante, Sá, Jaime e Gonzalez. Para a
temporada de 39, é aguardada a contratação do atacante Orsi, campeão mundial
com a Itália, mas por enquanto a realidade, mais modesta, acena com dois
ex-jogadores do São Cristóvão, Osvaldo e Caxambu.
O Flamengo é o favorito teórico, embora vá atuar com
alguns desfalques importantes, o principal deles o voluntarioso atacante
argentino Gonzalez, ainda convalescendo de uma forte gripe. Em seu lugar vai
pro jogo o trombador Caxambu, jogador visto com certa desconfiança pela
torcida, que fará sua estreia.
Noite de sexta-feira, nove e meia, um São Januário
lotado espera a entrada dos times em campo. O Vasco traja suas tradicionais
camisas pretas, o Flamengo vem de branco, uniforme oficial para jogos noturnos.
Os primeiros muxoxos emanam das sociais quando se confirma que os três
argentinos, na verdade, não irão atuar, pois o Ferrocarril, por conta de
questões burocráticas, atrasou o envio das respectivas liberações.
Mesmo assim o alarido é intenso, os vascaínos são
maioria (os ingressos foram priorizados para os sócios e torcedores
cruzmaltinos), mas o Flamengo se faz presente e numeroso. As duas torcidas
atiram-se em cantos, uivos e palavras de ordem enquanto as equipes se preparam
para iniciar a peleja. O que poucos imaginam é que os próximos 90 minutos
comporão uma das partidas mais sensacionais, emocionantes e elétricas da
história do tradicional clássico.
É dada a partida. Impetuoso, o Flamengo logo se atira
ao ataque, bola lançada a Caxambu, que domina de canela e perde. A zaga manda
pra longe, o rubro-negro retoma, Jaime amacia, passa por dois jogadores e toca
a Leônidas, que manda um chute de longe, forte mas sem muita colocação. Mas o
goleiro vascaíno Joel erra o bote e a bola vai pro gol. Dois minutos, Flamengo
1-0.
O Vasco dá a saída, bola lançada pra Niginho, Médio se
antecipa e aciona Jarbas, que arranca e cruza certeiro, na cabeça de Sá. O ponteiro
finaliza desajeitado, mas Joel espalma errado e a bola entra no gol. Três
minutos, Flamengo 2-0.
A essa altura, os gritos de incentivo inicial dos
vascaínos somem do estádio, e os primeiros muxoxos se fazem perceber, apesar de
abafados pela cantoria dos flamengos. Ferido em seus brios, o Vasco tenta
estocar a cidadela flamenga, mas o rubro-negro está seguro e controla
amplamente o jogo. Seu meio-campo roda a bola, irrita os camisas pretas, a
superioridade do Flamengo é flagrante. O goleiro Joel, que falhou nos dois
gols, começa a aparecer com algumas defesas, o que não o livra de ser o
principal alvo de uma torcida algo ranzinza. E a impaciência logo explodirá em
irritação.
O médio vascaíno Oscarino tenta uma jogada individual,
mas perde a bola para Jarbas, que faz grande partida. O atacante flamengo vai à
linha de fundo e cruza alto. Joel sai do gol e parece absoluto, a bola vem
fraca. Mas o infeliz goleiro solta a pelota na cabeça do trombudo Caxambu, que
marca seu primeiro gol e o terceiro do Flamengo. 18 minutos, Flamengo 3-0.
Atônita, a torcida vascaína mal tem tempo de esboçar
qualquer reação, pois seu time acaba de perder novamente a bola na saída. Uma
sucessão de toques e a bola encontra o ponteiro Sá, que se livra de Argemiro
com um lindo drible e dá um passe primoroso a Leônidas, deixando o Diamante
Negro na cara do gol. Aí, é só tirar de Joel e, aos DEZENOVE minutos, cravar
Flamengo 4-0.
Nem o mais fanático rubro-negro consegue perceber a
dimensão do que seu time está fazendo em campo. Com menos de vinte minutos de
jogo, o Flamengo está vencendo o Vasco em São Januário, diante de sua torcida,
por QUATRO A ZERO.
Cravejado de vaias, o pobre Joel é substituído, ainda
no primeiro tempo. O Vasco ainda faz mais algumas alterações, aproveitando-se
da regra de troca livre em amistosos. As mudanças dão certo, e o cruzmaltino
consegue enfim equilibrar a partida, também se valendo de certa indolência
flamenga. E aos 30 minutos, numa boa trama de seu ataque, os camisas negras
chegam ao seu primeiro gol, num chute torto de Niginho. Agora é Válter que
falha, “aceitando” o tiro de longe. Vasco 1-4.
Nos minutos finais da primeira etapa, o Vasco tenta
pressionar e o Flamengo contragolpear, mas as equipes pouco produzem. E, sob
sonoras vaias vascaínas e forte provocação flamenga, termina a primeira etapa.
Reinicia a partida, e logo se começa a perceber que
haverá outro jogo. O Vasco, mordido e ferido, passa a dominar todo o meio e
pela primeira vez no jogo encurrala o Flamengo em seu campo. Válter começa a
fazer defesas difíceis, e o segundo gol vascaíno parece iminente. E com efeito
aparece aos seis minutos, quando Luna manda violento tiro, sem chance para o
goleiro flamengo. Vasco 2-4.
O gol acende o estádio, que começa a empurrar os
vascaínos. Para piorar, Válter sente lesão e é substituído por Yustrich. Os
mais experientes flamengos percebem a mudança do rumo do jogo, e passam a
ensebar, enervar, cozinhar o jogo. E é a hora em que o mais improvável dos
personagens irá começar a aparecer.
Niginho recebe ótimo lançamento e fuzila, mas Yustrich
faz bela defesa. Esperto, o goleiro percebe que o Vasco avançou demais e manda
um chutão para o grandalhão Caxambu. O desajeitado atacante escora a bola,
apara a investida do zagueiro e consegue abrir para Sá. O ponta avança, espera
e cruza rasteiro para o próprio Caxambu, que vem na corrida e emenda. 13
minutos, Flamengo 5-2.
O gol poderia ser uma ducha gelada para os vascaínos,
mas acaba desconcentrando o Flamengo. Na saída de bola, o meio flamengo está
sem coordenação e assiste às manobras de Villadonica, que estica para o
ponteiro Luna cruzar e Niginho emendar, novamente diminuindo. 14 minutos, Vasco
3-5.
O Flamengo já não consegue frear o ímpeto vascaíno. As
alterações feitas por seu treinador melhoram consideravelmente a equipe,
especialmente no meio. Chovem bolas no gol de Yustrich, todas rechaçadas pela
boa atuação de Domingos. Mas a pressão é muito intensa, a essa altura os
camisas negras estão praticamente morando na área flamenga. O Vasco tenta rodar
o jogo, alçar bolas pros atacantes. Num desses cruzamentos, Médio se atrapalha
e agarra Niginho dentro da área. Pênalti, que Alfredo cobra e converte. 20
minutos, Vasco 4-5.
As divindades do futebol sibilam e cochicham,
estarrecidas. O Flamengo perdeu a chance de abrir uma goleada histórica no
primeiro tempo, e agora está prestes a sofrer uma virada inacreditável e
provavelmente humilhante, diante de um estádio em chamas que evoca a reação,
como em um mantra, um ritual religioso. A essa altura, nenhum torcedor
não-flamengo presente no estádio imagina outro desfecho que não a reviravolta
no placar. Morto, exausto fisicamente e à mercê de um adversário que voa em
campo, o Flamengo ainda precisa resistir pouco menos de meia hora.
Flávio Costa faz a última alteração, saca o cansado
Jocelyn e põe o argentino Volante. O time melhora um pouco, arrefece algo da
pressão vascaína. Que, no entanto, continua forte.
Vem o Vasco. Chute violento, Yustrich defende, no
rebote a zaga manda a escanteio. Bola cruzada, a cabeçada é forte, mas a bola
estala no peito de Domingos, que salva em cima do gol. Nesse lance uns três ou
quatro flamengos e vascaínos morrem umas três vezes nas arquibancadas. Outro
ataque do Vasco, outra defesa antológica de Yustrich. Agora Niginho passa por
dois e vai marcar, mas Domingos salva no momento fatal. Outro tiro de longe
beija a trave e sai.
E o jogo vai seguindo, o tempo escorrendo ou
estacando, a depender de qual lado está a ansiedade. O Flamengo parece não
resistir, mas segue mantendo a agora tênue vantagem. O time mal toca três
passes. Recorre à bola longa, ou à bicuda mesmo. Num desses lances, novamente o
grandão Caxambu consegue chegar na bola. Com muita dificuldade, consegue domar
a pelota irrequieta e ensaia avançar. O zagueiro Oswaldo vem pra dar o bote,
mas no momento exato Caxambu tropeça na bola, se desequilibra e quase cai,
atrapalhando o zagueiro. Sabe-se lá como, a bola repica e continua com Caxambu,
que agora tem Zarzur à sua frente. O zagueiro vem com tudo, e de repente se
mescolam pernas, braços, corpos e bola, numa farândula que termina, sabe-se lá
como, com Caxambu, trôpego, sozinho diante do arco vascaíno, apenas o impotente
arqueiro à sua frente. Todo torto, Caxambu consegue enfiar a bola no canto,
paralisando o estádio e, aos 35 minutos, fazendo Flamengo 6-4 Vasco. O terceiro
de Caxambu, o nome do jogo. Não Leônidas, não Sá, não Niginho, não esses
craques de seleção. Mas o caneleiro Caxambu, vindo de São Cristóvão sim senhor.
Nada mais acontece. Exangue e rendido, o Vasco perde
forças e poder de reação. Exausto, o Flamengo toca a bola e administra. As
sociais cruzmaltinas ainda aguardam um pouco, mas começam a ganhar o rumo de
casa, antes mesmo do apito final, que confirma a vitória flamenga em um dos
clássicos mais imprevisíveis de sua história.
O Flamengo, ao final do ano, conseguirá seu título,
abrindo caminho para uma era gloriosa. Nesse e nos anos seguintes, não perderá
a oportunidade de surrar o Vasco, o que fará em várias ocasiões. E Caxambu, o
herói improvável, será um reserva útil, marcando alguns gols importantes nessa
trajetória, antes de ir para o Palmeiras, onde também se destacará.
Mas jamais se esquecerá do dia em que foi notícia.