Irmãos
flamengos,
inicio esta coluna manifestando minha felicidade pela vitória na
quinta-feira, e mantendo acesa a fé para os próximos desafios do nosso amado Mengão.
Esta
semana, em dada oportunidade, tive o imenso prazer de trocar ideias com o
Gustavo, o Melo e o Simario sobre o passado do Flamengo, especialmente sobre as
experiências de nossos pais.
Papo da melhor
qualidade e que enriqueceu muito o meu dia.
E que me inspirou na
elaboração da coluna de hoje.
O Flamengo tem uma história
riquíssima e que merece ser contada e recontada infinitas vezes.
Por isso, amigos rubro-negros,
convido-os a que, de quando em vez, façamos uma viagem literária pela história
do Clube de Regatas do Flamengo.
Hoje falaremos de uma instituição que remonta
aos primórdios do clube, precisamente à década de 1910: a República Paz e Amor,
fundada por Gentil Monteiro, ladeado por Haroldo Borges Leitão, Abelardo Melo e José Bastos Padilha, este último chegou a ser presidente
do clube, um dos melhores de nossa história, em fins da década de 1930.
Sobre
a República Paz e Amor, Mario Filho diz que: “o Flamengo revivia as repúblicas
dos estudantes. Não era à toa que Gentil Monteiro fundara no 22, para dirigir o
Flamengo, e até moldá-lo, a República Paz e Amor.”
A
coluna se valerá de excertos da obra Histórias do Flamengo, de Mário Filho, o grande biógrafo do
Flamengo pré-década de 1970, sobretudo de seu capítulo “A Garagem”.
Antes
de iniciarmos a leitura propriamente dita, necessário se faz uma brevíssima
digressão a respeito do contexto no qual foi fundada a República paz e Amor.
Lá
pelos idos de 1910, a sede do Flamengo, situada na Rua do Russel, nº 22 (atual
Praia do Flamengo, nº 66), servia de garagem dos barcos do remo e de moradia
para remadores e estudantes, uma “autêntica cabeça-de-porco em plena Praia do Flamengo”,
nas palavras de Edigar de Alencar.
O
Flamengo era um clube pobre, muito pobre, quando comparado aos seus
adversários, e vivia quase que exclusivamente da contribuição dos seus poucos e
abnegados sócios.
Embora
pobre, o Flamengo já inspirava paixões avassaladoras e a fundação da República
Paz e Amor é bastante representativa desse fato.
Em
meio às brincadeiras, peraltices e à boemia desenfreada da turma do “Paz e Amor”,
percebe-se, de modo claro, as manifestações do caráter rubro-negro: intrepidez,
coragem, valentia, heroísmo, espírito galhofeiro e feliz, paixão e, acima de
tudo, muito amor ao Flamengo.
Para
a turma do “Paz e Amor” não havia grandes ou pequenos, ricos ou pobres,
celebridades ou anônimos. O aviso estava dado: “que não se metessem com o
Flamengo.”
Ante
tantas histórias narradas por Mário Filho, e na impossibilidade de reproduzi-las
integralmente, escolhi, com muito carinho, algumas passagens que considero
significativas.
Com
vocês, A República Paz e Amor.
Autor:
Mario Filho
“Ao
lado do Flamengo ficava um colégio de freiras. As boas irmãs não podiam chegar
à janela dos fundos. No quintal da garage os remadores nus jogavam pelota. Para
não viverem de janelas fechadas, as freiras mandaram levantar, sobre o muro, um
tapume de zinco.
Então,
na hora do recreio, os remadores nus deram para trepar nas árvores,
agarrando-se nos galhos mais altos, de onde espiavam as meninas e bebiam um
pouco daquela quietude de claustro.
As
freiras levantavam os olhos, benziam-se, apressadas, e fugiam, arrastando as
meninas que não podiam ver aqueles faunos enormes, musculosos, cabeludos,
pendurados nas árvores, não como frutos, mas como macacos.
E
aqueles demônios do 22, as freiras bem o sabiam, eram também bons rapazes, ou
tinham, lá no fundo, sentimentos nobres.
Quando
houve a grande ressaca, as ondas da altura de uma casa foram bater, com toda a
fúria, no colégio de freiras.
E
quem as salvou e salvou as meninas, indo e vindo, carregando-as no colo como se
elas fossem criancinhas de peito, senão aqueles rapazes do Flamengo, justamente
aqueles que eram como faunos trepados nas árvores que derramavam sombra no
quintal do colégio.”
..........
“O
‘Estrada de Ferro’, por exemplo. Ninguém lhe guardou o nome. No primeiro dia em
que foi ao clube contou vantagem: trabalhava nos correios. Um dia o trem em que
ele vinha parou em Belém: o maquinista teve uma coisa. ‘Não havia ninguém que
soubesse dirigir o trem. Eu não sabia, mas tinha de voltar para o Rio. Disse
que sabia. Peguei na manivela, soltei o freio, não respeitei sinal. De repente
olhei para o nome de uma estação e li: Cascadura. Freei o trem. A velocidade
era tanta que ele foi parar na Central’.
Abelardo
Melo olhou para os outros e sugeriu: ‘vamos dar nele?’
Deram
uma surra no ‘Estrada de Ferro’. Ele precisava aprender a respeitar os mais
velhos no clube. Para contar uma vantagem, o sócio tinha de esperar um pouco.
O
‘Estrada de Ferro’ fugiu, saiu correndo pela praia, os outros atrás dele, ‘pega,
pega ladrão!’ Desapareceu numa esquina.
‘Amanhã
ele está aqui’, disse Gentil Monteiro. Abelardo Melo duvidou: aquele não havia
de querer saber mais do Flamengo.
Quem
tinha razão era Gentil Monteiro. No outro dia, de manhã cedo, o ‘Estrada de
Ferro’ apareceu, como se nada tivesse acontecido. Daí por diante não contou
mais vantagem, ficava escutando vantagem dos outros.”
..........
“Foi
quando entrou para o Flamengo o doutor Anibal Varges. O doutor Anibal Varges
tinha um automóvel, dos primeiros a aparecer no Rio: alto, de rodas enormes, comprido.
O automóvel ficava encostado junto ao meio fio.
E
enquanto o doutor Anibal Varges estava se preparando, já depois de remar, para
sair, o pessoal da República Paz e Amor amarrava um jacá atrás do carro.
O
jacá tinha uma grande vantagem: não fazia barulho. Lata velha era campainha de
alarma. O carro rodava dois metros, parava logo. O doutor Anibal Varges
saltava, desamarrava as latas, ia embora. E não ficava zangado com aquelas
coisas de rapazes.
O
jacá era silencioso. Ficava amarrado atrás do carro toda a vida. Só quando
parava em frente ao consultório, era que o doutor Anibal Varges dava pela
história.
O
carro parava, juntava gente, todo mundo rindo, apontando para trás. O doutor
Anibal Varges, muito grave, para não dar confiança, ia desamarrar o jacá, e depois
esfregava as mãos, pedia licença. A pequena multidão se abria. Ele subia a
calçada e enfiava-se pelo prédio onde dava consultas.
No
outro dia, estando com a turma do Flamengo, na hora de levar o barco para a
rampa, não pedia que acabassem com aquilo. Tudo cansa, até amarrar jacá na
traseira do carro dos outros.
A
melhor maneira de acabar com aquilo era não dar importância. E o doutor Anibal
Varges tratava de se impor ao respeito da República Paz e Amor, dando
conselhos. Bons conselhos.
Por
exemplo: o Flamengo só tinha um chuveiro de água fria. Água fria, só, todos os
dias, não era bom. Depois de um exercício tão saudável como o do remo, o que se
devia tomar era uma ducha de água fria e de água quente.
O
doutor Anibal Varges se demorava enumerando os benefícios da mudança brusca da
temperatura da água. Um golpe d’água bem frio, um golpe d’água bem quente.
Depois de uma ducha assim a gente podia trabalhar quantas horas quisesse, sem
sentir o menor cansaço.
Ah!
O doutor Anibal Varges achava que era bom mudar a temperatura da água?
Compraram
seis pedras de gelo, bem grandes, entupiram a caixa d’água com as pedras de
gelo. De manhã cedo a caixa d’água estava suando.
O
doutor Anibal Varges era o primeiro a chegar. Chegava às quatro e meia da
manhã, tirava um barco, remava. Ninguém entrava debaixo do chuveiro antes dele.
De
propósito, naquela manhã, os outros demoraram mais, deixaram-se ficar na
garage.
O
doutor Anibal Varges voltou, alegre, trancou-se no banheiro, abriu o chuveiro.
Do lado de fora os outros ouviram um verdadeiro rugido. O barulho do chuveiro
durou instante, o tempo de abrir e fechar.
Do
Flamengo, o doutor Anibal Varges foi diretinho para a cama.
O
doutor Anibal Varges foi vingado. As pedras de gelo dentro da caixa d’água, a
caixa d’água suando, e todo mundo tendo de tomar banho. Quando alguém saía do
banheiro, estava roxo, tremendo de frio. Saía aos saltos uh! uh! uh!
botando fumaça pela boca.
Outro
tinha de entrar. Quem não tomara banho ainda ficava na porta, achando graça. ‘Agora
é a sua vez.’ Quem estava na vez era levado para dentro do banheiro. Por bem ou
por mal. Não adiantava fugir.
O
Manoel de Almeida, o ‘Jacaré’, foi tirado do bonde. E passou por uma vergonha,
Gentil Monteiro gritando: ‘tem de tomar banho, tem de tomar banho’.
O
‘Jacaré’ a princípio fez força, não queria ir de jeito nenhum. As senhoras, um pouco
escandalizadas, não compreendendo direito como se podia ter tamanho horror à
água.
O
‘Jacaré’ cansou-se, deixou de lutar, ficou quieto, manso. Só pediu uma coisa: ‘me
larguem que eu vou sozinho.’
..........
“O
Lamas inaugurou um cartaz. De noite, quem chegava sabia logo de todos os
resultados dos jogos.
O Fluminense ganhou do Flamengo, o ‘Paz e Amor’ exigiu
que o placar fosse retirado.
Não
retiraram.
Então
o placar foi quebrado, arrastado para a rua.
Em
dia de jogo, a turma do ‘Paz e Amor’ chegava na arquibancada, escolhia um
lugar. ‘Quem não for Flamengo trate de ir para bem longe. Se não vai apanhar.’”
..........
“E
o Vasco saiu da segunda divisão: foi para a primeira, deu em todo o mundo. O
Flamengo apanhou uma vez; para a segunda se preparou.
O
‘Paz e Amor’ distribuiu paz e remos pelos remadores. Naquele dia o ‘Jornal do
Comércio’ e o ‘Jornal do Brasil’ se esgotaram nas bancas do Largo do machado
até a Galeria Cruzeiro. Tudo para embrulhar pá de remo. Os vascaínos não
estavam prevenidos: gritavam ‘Vasco!’ e levavam pá de remo no alto da cabeça.
O
Flamengo venceu e o ‘Paz e Amor’ fez um carnaval pela cidade.
Um
tamanco de dois metros de comprimento foi arrancado de uma tamancaria na Rua do
Catete; as quitandas tiveram de abrir para vender cebolas. Fez-se uma enorme
réstia de cebolas de não sei quantos metros de comprimento, para engrinaldar a
estátua de Pedro Álvares Cabral.
Um
cortejo de automóveis. Itinerário: Praia do Flamengo, Glória, parada em frente à
estátua de Pedro Álvares Cabral, Lapa, bem junto do ‘Capela’, o bar dos
vascaínos, e por aí fora.
No
Mercado das Flores comprou-se uma coroa de defunto. Quando, na madrugada do dia
seguinte, os vascaínos apareceram em Santa Luzia (antiga sede do clube),
encontraram uma coroa de defunto dependurada na porta da sede.
Aquilo
não podia ficar assim. De noite o Vasco organizou um cortejo de automóveis. Ia
dar uma lição de boas maneiras à turma do ‘Paz e Amor.’ Nada de coroa de
defunto: uma ‘corbeille’ gigantesca seria oferecida ao Flamengo, o único clube
que derrotara o Vasco.
Lá
se foram os automóveis, Vasco! Vasco!
Havia
pouca gente no Flamengo, àquela hora. A porta da frente foi fechada; uns
subiram para o primeiro andar, outros para o segundo.
E
outros para o telhado da pensão da ‘Espanhola’, para o telhado do colégio de
freiras. Lá de cima começou a cair uma chuva de telhas.
Cá
de baixo os vascaínos responderam com pedras. Pedras de baixo para cima, telhas
de cima para baixo.
Destelharam
a pensão da ‘Espanhola’, o colégio de freiras: não se tocou no telhado do
Flamengo.
Havia uma coisa sagrada para aquela gente do ‘Paz e Amor’: o clube,
tudo que fosse do clube, até uma telha. Não respeitavam nada, exceto o
Flamengo.
Por isso tinha escrito na parede, em letras grandes, só um cego não
leria, a letra F dos estatutos, que tratava das obrigações dos sócios:
‘Zelar pelo material do clube.’
Ai de quem, sendo sócio ou não, quebrasse um remo, um barco da
flotilha do Flamengo. Levava uma surra.”
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Autor:
Mario Filho.
Antiga Sede do Clube de Regatas do Flamengo
Abraços
a todos, bom fim de semana e Saudações Rubro-Negras.
Uma
vez Flamengo, sempre Flamengo.