Saudações
flamengas a todos. Hoje deixo uma passagem bastante emblemática, referente à
relação do Flamengo com sua torcida. Recomendo especialmente o vídeo, com
imagens pouco comuns. Boa leitura.
1983.
Lá está o
Flamengo, na sua primeira decisão no Maracanã sem Zico. Algumas caras novas,
quebrando um pouco o “craque faz em casa”. Talvez sinal de novos tempos, de uma
nova era que alguns apressadamente já proclamam.
Sim, nessa
“nova era” o Bangu, até então um simpático saco de pancadas do subúrbio, um
time médio que encaixou dois ou três bons jogadores e formou um time certinho,
o Bangu dos descontraídos treinos regados a cerveja, o Bangu, o Bangu, vira
favorito contra o Flamengo, o poderoso Flamengo, o Flamengo campeão universal,
campeão de tudo que é taça.
Há
motivos. Zico não está mais lá, e um país inteiro anda órfão. Atordoado, o
Flamengo viveu meses de terror, acumulando derrotas e goleadas humilhantes,
fazendo partidas duríssimas contra equipes semi-rurais, frequentando posições
estranhas e de uma humilhante extravagância na tabela de classificação.
E em
questão de semanas, tudo mudou. Cuspiram, apedrejaram, escarneceram, mataram e
soterraram o Flamengo. E o Flamengo ressuscitou. Comprou meio time, mostrou
força ao arrancar na marra o treinador do Fluminense, reconstruiu-se, olhos
embotados em sangue.
E voltou
a surrar seus rivais. Ganhou todos os clássicos e chegou à final da Taça Rio,
contra o Bangu.
Mesmo assim,
muitos elegem o Bangu favorito. Pois está pronto há mais tempo, “tem mais
conjunto”.
A torcida
não pensa assim. Enche o Maracanã. Linda noite de quinta-feira. É dia de voltar
a cantar o Flamengo, de festejar o Flamengo.
Apito.
Jogo duro, pesado, escamado, de decisão. Ainda fase de estudos, aquele 0-0
teimoso, pétreo.
Alguém
invade o campo. Traja rubro-negro. Mais um, todo jogo acontece. O intruso chega
na beira do gramado, sacode os braços. Subitamente, arranca a camisa e a joga
ao chão. Agora veste Fluminense. Rebola, saltita e pisoteia o Manto. 75 mil
estão atônitos, parvos, revoltados. O Flamengo, antes imbatível, onipotente,
monarca, agora é conspurcado por um ninguém em rede nacional, um qualquer
resolve expelir seus traumas, seu recalque, suas fobias, cuspir na cara de um
estádio inteiro, sem reação, sem resposta, sem desagravo.
A polícia
está chegando, enquanto isso o invasor segue sua performance.
Poucos
percebem o pique. Júnior corre, voa de sua lateral-esquerda até a extremidade
oposta do gramado, onde está alojado o boneco. Já chega dando-lhe na fuça.
Empurra, mete dedo na cara, e vai cobrir mais porrada. Está colérico, a baba
escorrendo dos olhos. Fala e berra, aos sopapos, agora a saltitante figura está
lívida, estática. Enfim a PM chega e “salva” o sujeito de apanhar mais. A muito
custo, o Capacete é acalmado.
O
Maracanã vai abaixo. E canta Flamengo com os pulmões soltos, leves, plenos. É o
sinal de que não será uma noite qualquer.
O time se
enche de brio. Parece avisar à sua torcida que não vai perder essa taça por
nada. Arremessa-se às jugulares do adversário, que se acua, encurrala,
retranca, resiste. Até que erra. E no erro, vem o contragolpe. E o gol. Gol de
Adílio, também artilheiro de decisão. E mais festa. Oh, meu Mengão, eu te
gosto, eu te canto, eu te tenho alegria.
Segundo
tempo, Bangu ataca mas esbarra na parede. Dois flamengos cansam, saem
esgotados. O time se multiplica, cabeças mergulham rasantes nas chuteiras
adversárias, bolas e canelas são lançadas ao inferno, é dia de ser campeão, não
é dia de jogar bonito. É dia de ser vencedor.
O estádio
entende. E dá as mãos. E anda junto.
A pancada,
seca. Adílio sente. Sai de campo, é atendido. Ato contínuo, Mozer também sente.
Beira do campo, sai de cena. O sinal do médico é implacável, inapelável,
incontestável. Não dá mais. Adílio fora, Mozer fora. Não pode mais mexer. Vai
ter que ser com nove. E ainda falta meia hora.
Qualquer
estádio gelaria, qualquer estádio calaria, qualquer estádio praguejaria a
sorte, qualquer estádio teria a resposta pronta pra derrota, qualquer estádio
aplaudiria o honroso vice, qualquer estádio iria embora.
Menos o
Maracanã do Flamengo.
O urro
vem das entranhas, um vento que rebenta gutural, troante, ribombante.
“Meeeeengoooooo”, um açoite que intimida e expõe toda a força de uma nação que,
mais do que simplesmente torcer, É o próprio Flamengo, mais do que seus
jogadores.
Adílio se
arrepia. Mozer se arrepia. E, estropiados, arrebentados, quebrados, os dois
voltam ao campo. Dane-se joelho, dane-se tornozelo, dane-se carreira. Se for o
caso, são os últimos minutos de suas vidas. O Flamengo precisa vencer, tem que
vencer, tem fome de vencer. E vai vencer. Nem que seja preciso deixar a
existência em campo.
E, de
repente, o torcedor percebe que, mesmo com onze, o Bangu se encolhe e recua.
Mesmo com nove o Flamengo parte pra cima, adianta a marcação, encara o
oponente, abre e estufa o peito, avisa e mostra quem é o grande. Não são nove
contra onze, são setenta mil contra onze. Setenta mil que lançam a bola para um
manquitolante Adílio, que com uma perna só chama o zagueiro pro drible, pro
confronto, pro pau. Adílio que mostra pra torcida a força de uma raça, de uma
nação que sempre será vencedora, será diferenciada, terá consciência de sua
incomparável grandeza, mesmo nos mais acres momentos. E está ali, desafiador,
marrento, inconsequente, no alto de sua contusão, divinal pererê da bola.
O
Flamengo não é sequer levemente ameaçado. E segura o placar. E vence o jogo. E
é campeão. E ergue a taça. E toca o hino. E tem volta olímpica. E tem bagunça,
a bagunça de uma festa dos jogadores com sua gente, a bagunça da felicidade de
uma torcida que se percebe jogando junto, comungando e se sentindo dentro de
campo, nas porradas de Júnior, na bravura de Mozer ou na audácia de Adílio.
Mais
tarde, um repórter chega em Júnior. “Júnior, e o lance lá do torcedor, o que
houve ali?”. A resposta seca, cortante, de uma sinceridade quase infantil.
Desconcerta.
“Ele chutou a camisa do Flamengo."