Saudações flamengas a todos.
Ultimamente ando me lembrando
demais da passagem controvertida de um jogador que chegou à Gávea rodeado de
expectativas. Os mais atentos talvez identifiquem o motivo. Boa leitura.
1989.
“Rei, rei, rei, o
Borghi é nosso rei!”
O coro entoado febrilmente pelos
torcedores flamengos que se espremem no Aeroporto do Galeão parece soar mais
como um apelo do que propriamente uma saudação. Até porque, a rigor,
praticamente ninguém conhece aquele argentino meio atarracado e de feições
indígenas que acaba de ser contratado pelo Flamengo, por um empréstimo de um
ano. Sabem apenas se tratar de um “argentino craque de bola que vai resolver a
saída do Bebeto”. É o que basta.
“Rei, rei, rei.”
Borghi é abraçado, beijado,
carregado. Lívido, não parece acreditar no que presencia, “é impressionante o
carinho”, mas a rigor o excesso de festa mal disfarça a necessidade de uma
nação magoada e ansiosa por cultuar novos ídolos. Gritar outros nomes. Esquecer
o traidor.
“É nosso rei.”
Em tempos de pouca informação
global, mesmo os mais fanáticos pouco sabem de Borghi. Foi revelado no modesto Argentinos
Jrs, o mesmo clube de Maradona, com quem, aliás, foi várias vezes comparado por
sua invulgar habilidade. Protagonista da conquista inédita da Libertadores de
1985 (em que superou, entre outros, Fluminense e Vasco), despertou o interesse do
Milan. No entanto, seu temperamento difícil e instável impediu, entre outras
coisas, sua adaptação ao futebol italiano. Além disso, Borghi foi titular em
alguns jogos da seleção argentina que conquistou o Mundial em 1986, mas suas
atuações discretas o fizeram ser barrado ainda na primeira fase. Alguns
analistas mais atentos já vislumbram certa decadência na trajetória de Borghi,
que ainda por cima passou a andar às voltas com uma teimosa lesão na coxa.
Mesmo assim, o Flamengo resolve
apostar.
Borghi é a peça principal, em
termos midiáticos, do caminhão de reforços que Gilberto Cardoso Filho resolve
trazer para aplacar a fúria da torcida pela perda do Estadual e pela desastrosa
condução do “caso Bebeto”, inacreditavelmente perdido para o Vasco. Josimar,
Fernando, Marcio Rossini, Júnior, Renato, Uidemar, o Flamengo traz praticamente
um time completo. Mas o argentino, “jogador de Copa do Mundo”, “estrela
internacional”, é a cereja do bolo, mesmo com um histórico recente não muito
recomendável. “Me colocavam no meio-campo, eu sou atacante”, alegou aos
repórteres mais impertinentes.
Os primeiros treinamentos
assombram os espectadores na Gávea. Com uma técnica primorosa e um futebol
refinado (com direito a passes e até chutes de letra), Borghi encanta a todos e
aumenta dramaticamente a expectativa para sua estreia. Que finalmente é
marcada, a partida contra o Corinthians no Maracanã, pela terceira rodada do
Brasileiro.
Dá tudo errado. Quer dizer, quase
tudo. O time atua muito mal, perde a partida (0-1), Renato é substituído e reclama
acintosamente, em episódio que culmina na demissão de Telê Santana, e Borghi
também joga mal, é discreto, pesado. Mas, ao ser substituído aos 14’ do segundo
tempo, é aplaudido por uma torcida paciente, que ignora o fato do argentino
estar visivelmente acima do peso e não chutar nenhuma bola a gol, apesar de
atuar como atacante.
No treino seguinte, a ducha fria.
Borghi sente a coxa e é vetado para a partida contra o Vitória, em Salvador.
Também ficará fora de algumas partidas mais, até que o treinador João Carlos
enfim consegue escalá-lo contra o Argentinos Jrs, seu ex-time, na estreia da
Supercopa. Dessa vez, Borghi não escapa, junto com o restante da equipe, das
pesadas vaias de uma torcida inconformada com a derrota (0-1).
“Estou me adaptando”, explica
Borghi aos repórteres no final do jogo.
O temperamento começa a trair o
jogador. Em um treino, Borghi agride um juvenil e é severamente repreendido
pela comissão técnica. O novo treinador, Espinoza, não parece se encantar com o
estilo excessivamente técnico e pouco dinâmico do argentino, mas mesmo assim
lhe concede uma oportunidade, na partida contra o Internacional, no Beira-Rio.
Borghi é o pior jogador em campo,
erra praticamente tudo, mal participa do jogo, parece disperso, alheio. É
substituído por Renato (ex-América) e o time melhora sensivelmente, arrancando
um empate em 0-0. Começam a ganhar corpo alguns sussurros e murmúrios nos
corredores da Gávea questionando a contratação de um jogador até aqui
improdutivo.
“Ainda não me adaptei.”,
justifica Borghi.
Em uma entrevista que ao mesmo
tempo causa espanto e indignação, Borghi alega estar jogando na função errada,
que não é goleador e que na verdade atua no meio-campo, “tipo como um
meia-ponta de lança”. Espinoza então resolve escalá-lo no meio. Borghi segue pífio, lento, burocrático. E
problemático. Sem avisar a ninguém, simplesmente desaparece e não embarca com a
delegação flamenga que retorna de Buenos Aires após nova derrota (1-2) para o
Argentinos Jrs, que elimina a equipe da Supercopa.
De volta ao Rio, sofre nova
contusão na coxa. Exames mais minuciosos dão conta que Borghi possui uma lesão
séria, uma espécie de caroço no músculo da coxa, que somente pode ser sanado em
definitivo com uma cirurgia. Não atrapalha seguir jogando, mas enquanto não operar
o argentino continuará sujeito a sucessivos problemas musculares.
“Meu problema é de adaptação”,
repete Borghi.
Esquecido, encostado e
praticamente colocado de lado, o argentino agora convive com a indiferença de
torcida. Antes chamado “El Matador”, agora recebe a alcunha jocosa de “La
Playa”, em alusão ao seu permanente bronzeado, mantido na Praia do Leme, onde é
frequentador contumaz. Aliás, a praia parece ser o lugar onde Borghi mais se
sente à vontade, plenamente ambientado.
O retorno de Zico ao time soterra
de vez a trajetória de Borghi como titular do Flamengo. O argentino ainda
frequenta esporadicamente o banco de reservas em alguns jogos. Na derrota (0-2)
para o Cruzeiro no Mineirão, que elimina o Flamengo do Brasileiro, entra no
decorrer da partida e tem (mais uma vez) atuação apagada. É a última vez que
veste o Manto Sagrado.
Ao se reapresentar ao Flamengo no
início da temporada de 1990, Borghi procura a diretoria e pede dispensa do
restante do empréstimo. Quer retornar a Buenos Aires, recomeçar a carreira mais
perto de casa. O pedido de Borghi é recebido com alívio pelos dirigentes e
prontamente aceito. Assim, discretamente, sem alarde e sem deixar qualquer tipo
de saudade, chega ao fim a trajetória de Borghi no Flamengo. Ao todo, seis jogos.
Nenhum gol.
Na última entrevista no Brasil,
já de malas prontas para retornar, Borghi é sucinto e em poucas palavras dá sua
opinião, explicando porque não conseguiu vingar no clube mais popular do país.