domingo, 4 de agosto de 2013

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

Ultimamente ando me lembrando demais da passagem controvertida de um jogador que chegou à Gávea rodeado de expectativas. Os mais atentos talvez identifiquem o motivo. Boa leitura.

1989.

“Rei, rei, rei, o Borghi é nosso rei!”

O coro entoado febrilmente pelos torcedores flamengos que se espremem no Aeroporto do Galeão parece soar mais como um apelo do que propriamente uma saudação. Até porque, a rigor, praticamente ninguém conhece aquele argentino meio atarracado e de feições indígenas que acaba de ser contratado pelo Flamengo, por um empréstimo de um ano. Sabem apenas se tratar de um “argentino craque de bola que vai resolver a saída do Bebeto”. É o que basta.

“Rei, rei, rei.”

Borghi é abraçado, beijado, carregado. Lívido, não parece acreditar no que presencia, “é impressionante o carinho”, mas a rigor o excesso de festa mal disfarça a necessidade de uma nação magoada e ansiosa por cultuar novos ídolos. Gritar outros nomes. Esquecer o traidor.

“É nosso rei.”

Em tempos de pouca informação global, mesmo os mais fanáticos pouco sabem de Borghi. Foi revelado no modesto Argentinos Jrs, o mesmo clube de Maradona, com quem, aliás, foi várias vezes comparado por sua invulgar habilidade. Protagonista da conquista inédita da Libertadores de 1985 (em que superou, entre outros, Fluminense e Vasco), despertou o interesse do Milan. No entanto, seu temperamento difícil e instável impediu, entre outras coisas, sua adaptação ao futebol italiano. Além disso, Borghi foi titular em alguns jogos da seleção argentina que conquistou o Mundial em 1986, mas suas atuações discretas o fizeram ser barrado ainda na primeira fase. Alguns analistas mais atentos já vislumbram certa decadência na trajetória de Borghi, que ainda por cima passou a andar às voltas com uma teimosa lesão na coxa.

Mesmo assim, o Flamengo resolve apostar.

Borghi é a peça principal, em termos midiáticos, do caminhão de reforços que Gilberto Cardoso Filho resolve trazer para aplacar a fúria da torcida pela perda do Estadual e pela desastrosa condução do “caso Bebeto”, inacreditavelmente perdido para o Vasco. Josimar, Fernando, Marcio Rossini, Júnior, Renato, Uidemar, o Flamengo traz praticamente um time completo. Mas o argentino, “jogador de Copa do Mundo”, “estrela internacional”, é a cereja do bolo, mesmo com um histórico recente não muito recomendável. “Me colocavam no meio-campo, eu sou atacante”, alegou aos repórteres mais impertinentes.

Os primeiros treinamentos assombram os espectadores na Gávea. Com uma técnica primorosa e um futebol refinado (com direito a passes e até chutes de letra), Borghi encanta a todos e aumenta dramaticamente a expectativa para sua estreia. Que finalmente é marcada, a partida contra o Corinthians no Maracanã, pela terceira rodada do Brasileiro.

Dá tudo errado. Quer dizer, quase tudo. O time atua muito mal, perde a partida (0-1), Renato é substituído e reclama acintosamente, em episódio que culmina na demissão de Telê Santana, e Borghi também joga mal, é discreto, pesado. Mas, ao ser substituído aos 14’ do segundo tempo, é aplaudido por uma torcida paciente, que ignora o fato do argentino estar visivelmente acima do peso e não chutar nenhuma bola a gol, apesar de atuar como atacante.

No treino seguinte, a ducha fria. Borghi sente a coxa e é vetado para a partida contra o Vitória, em Salvador. Também ficará fora de algumas partidas mais, até que o treinador João Carlos enfim consegue escalá-lo contra o Argentinos Jrs, seu ex-time, na estreia da Supercopa. Dessa vez, Borghi não escapa, junto com o restante da equipe, das pesadas vaias de uma torcida inconformada com a derrota (0-1).

“Estou me adaptando”, explica Borghi aos repórteres no final do jogo.

O temperamento começa a trair o jogador. Em um treino, Borghi agride um juvenil e é severamente repreendido pela comissão técnica. O novo treinador, Espinoza, não parece se encantar com o estilo excessivamente técnico e pouco dinâmico do argentino, mas mesmo assim lhe concede uma oportunidade, na partida contra o Internacional, no Beira-Rio.

Borghi é o pior jogador em campo, erra praticamente tudo, mal participa do jogo, parece disperso, alheio. É substituído por Renato (ex-América) e o time melhora sensivelmente, arrancando um empate em 0-0. Começam a ganhar corpo alguns sussurros e murmúrios nos corredores da Gávea questionando a contratação de um jogador até aqui improdutivo.

“Ainda não me adaptei.”, justifica Borghi.

Em uma entrevista que ao mesmo tempo causa espanto e indignação, Borghi alega estar jogando na função errada, que não é goleador e que na verdade atua no meio-campo, “tipo como um meia-ponta de lança”. Espinoza então resolve escalá-lo no meio.  Borghi segue pífio, lento, burocrático. E problemático. Sem avisar a ninguém, simplesmente desaparece e não embarca com a delegação flamenga que retorna de Buenos Aires após nova derrota (1-2) para o Argentinos Jrs, que elimina a equipe da Supercopa.

De volta ao Rio, sofre nova contusão na coxa. Exames mais minuciosos dão conta que Borghi possui uma lesão séria, uma espécie de caroço no músculo da coxa, que somente pode ser sanado em definitivo com uma cirurgia. Não atrapalha seguir jogando, mas enquanto não operar o argentino continuará sujeito a sucessivos problemas musculares.

“Meu problema é de adaptação”, repete Borghi.

Esquecido, encostado e praticamente colocado de lado, o argentino agora convive com a indiferença de torcida. Antes chamado “El Matador”, agora recebe a alcunha jocosa de “La Playa”, em alusão ao seu permanente bronzeado, mantido na Praia do Leme, onde é frequentador contumaz. Aliás, a praia parece ser o lugar onde Borghi mais se sente à vontade, plenamente ambientado.

O retorno de Zico ao time soterra de vez a trajetória de Borghi como titular do Flamengo. O argentino ainda frequenta esporadicamente o banco de reservas em alguns jogos. Na derrota (0-2) para o Cruzeiro no Mineirão, que elimina o Flamengo do Brasileiro, entra no decorrer da partida e tem (mais uma vez) atuação apagada. É a última vez que veste o Manto Sagrado.

Ao se reapresentar ao Flamengo no início da temporada de 1990, Borghi procura a diretoria e pede dispensa do restante do empréstimo. Quer retornar a Buenos Aires, recomeçar a carreira mais perto de casa. O pedido de Borghi é recebido com alívio pelos dirigentes e prontamente aceito. Assim, discretamente, sem alarde e sem deixar qualquer tipo de saudade, chega ao fim a trajetória de Borghi no Flamengo. Ao todo, seis jogos. Nenhum gol.

Na última entrevista no Brasil, já de malas prontas para retornar, Borghi é sucinto e em poucas palavras dá sua opinião, explicando porque não conseguiu vingar no clube mais popular do país.

"Não me adaptei."