domingo, 26 de maio de 2013

Alfarrábios do Melo



Saudações flamengas a todos. Já que logo mais tem Santos x Flamengo, iniciando o Campeonato Brasileiro, deixo um texto contando a história de um encontro no Maracanã, contra o Santos de Pelé. Boa leitura.

1957.

O Maracanã está lotado.

É uma belíssima tarde de um domingo ensolarado de maio. E é bonito ver o gigante de cimento novamente pulsando, respirando, dançando ao som de dezenas de milhares de almas que professam sua fé, seu amor ao Mais Querido do Brasil.

O torcedor está com saudade do Flamengo.

É a primeira partida oficial do rubro-negro no ano no Maior do Mundo, e a primeira vez que o Flamengo atua no Maracanã desde que, há três meses, encantou o país com uma série de amistosos contra o poderoso Honved, base da mitológica seleção húngara de 1954, em que os comandados por Don Fleitas deram uma canseira em Puskas e companhia.

Mas o momento agora é diferente.

O Flamengo vive um momento de incertezas. Seu maior craque, Evaristo, acaba de se transferir para o Barcelona, muito em função das atuações antológicas nos jogos contra o Honved. Aliás, os confrontos com os húngaros ainda repercutem. A CBD acaba de suspender o rubro-negro e o Botafogo (que também enfrentou os europeus) por 45 dias, alegando que o Honved não tinha autorização da FIFA para excursionar (muitos de seus jogadores se tornaram dissidentes do regime comunista), e o anúncio da punição tem agitado os bastidores do clube. Além disso, o elenco já começa a dar sinais de desgaste, e os amistosos iniciais não deixam de servir como uma tentativa de encontrar alternativas para a renovação do grupo de jogadores.

Após rodar pelo país e pelo exterior, um desfalcado Flamengo estreia no Torneio Rio-São Paulo com uma derrota contundente (1-4) para o São Paulo, no Pacaembu. Recupera-se no amistoso do Dia do Trabalho, goleando (4-1) o Fluminense em um São Januário abarrotado. Agora o time terá, na sequência do Rio-SP, o Santos, bicampeão paulista, pela frente. 

O Santos, antigo coadjuvante que montou uma das melhores equipes do país, e que já começa a ser reconhecido pela força de seu ataque. O perigoso ponta-esquerda Pepe está fora, mas o restante do time vem com força máxima, com destaques para o goleiro Manga, o vigoroso comandante Zito e o ataque em que despontam os velozes Alfredinho e Pagão e a um garoto que vem sendo preparado como uma joia, o jovem Pelé.

Enquanto isso, o Flamengo enfrenta problemas e mais problemas. Pavão e Dequinha estão contundidos, Dida e Índio, recuperados de lesões, ainda seguem sem condicionamento físico e Rubens anda às turras com Solich. Cinco desfalques, meio time de fora. Ademais, os cronistas já projetam que a frágil zaga flamenga, formada pelo rústico Tomires e pelo limitado reserva Milton Copolilo, será engolida por Pelé, Pagão & Cia. Com efeito, o quadro se anuncia bastante sombrio para o Flamengo.

Mas o Maracanã está cheio. E em festa.

Entra em campo o Santos, usando seu segundo uniforme, o branco, de visitante. Escalado com Manga, Getúlio e Ivan; Ramiro, Urubatão e Zito; Alfredinho, Alvaro, Pagão, Pelé e Tite. Alguns aplausos, outros tantos apupos e uma expectativa que cresce até explodir em fogos e gritos quando os onze jogadores vestindo rubro-negro sobem o túnel e aparecem no gramado. Ari, Tomires e Milton; Jadir, Luiz Roberto e Jordan; Joel, Moacir, Henrique, Luiz Carlos e Zagalo são os designados a tentar parar, juntamente com sua colossal torcida, o campeão paulista.


E numa coisa os analistas esportivos acertam. Vai começar um massacre.

O paulista Abílio Ramos trila o apito. E, repetindo o que já mostrara contra o poderoso Honved, os jovens flamengos ignoram a força do adversário e se atiram ao ataque com bravura e ousadia. Liderados por Zagalo, que já demonstra notável espírito de luta, o Flamengo trança a bola na intermediária adversária e uma bola é lançada com perigo a Henrique, que quase marca, enlouquecendo o estádio. O torcedor berra, grita, intimida Na sequência, o Santos tenta sair jogando pela esquerda, mas Jordan se antecipa e inicia mais uma estocada flamenga, que vai chegar aos pés de Zagalo, fechando em diagonal pelo meio. Ninguém mais está sentado, ninguém mais pisca. O falso ponta limpa e manda a bomba, sem chances para Manga. DOIS minutos de jogo, o Flamengo já vence por 1-0. E o Maracanã salta e festeja a façanha dos seus heróis.

O início realmente é arrasador. Mas será sustentável?

O Santos sente o gol. Não esperava tamanha demonstração de personalidade e “desrespeito” do Flamengo. Tenta articular seu ataque, busca aproveitar o falso recuo rubro-negro. Mas Joel e Luiz Carlos estão abertos nas pontas, à espreita para os contragolpes. Zagalo ajuda Luiz Roberto e Jordan a dar combate ao meio, e Moacir, com incrível mobilidade, flutua entre os espaços deixados pelos desnorteados santistas. Até a intermediária flamenga, o bonito toque de bola do Santos funciona. A partir daí, o ferrolho rubro-negro pressiona, acossa, esgana até retomar a bola, que é lançada para que a cavalaria flamenga dê suas alucinantes estocadas, empurrado por um estádio em brasa. Uma chance, duas. Na terceira, Moacir lança em profundidade para o garoto Luiz Carlos, que chega na corrida e bate forte, no canto. DEZ minutos, Flamengo 2-0. O ensurdecedor clímax do Maracanã arrepia os mais desencantados.

Com a vantagem, o Flamengo entrincheira-se em sua retaguarda e espera. Mas o Santos, escaldado, tenta cozinhar a partida, encontrar alguma forma de se livrar da armadilha de Don Fleitas. Os criticados Copolilo e Tomires não perdem uma bola, enxotam os intrusos Pelé e Pagão de sua área, na bola, na bicuda, na porrada e no grito. Sem cair na tentação de ampliar o marcador, o Flamengo segue exercendo sua marcação sufocante no meio e buscando contragolpear. Ainda perde mais algumas chances, mas o primeiro tempo termina mesmo 2-0.

Inicia a segunda etapa, o Santos faz algumas alterações, o Flamengo também saca Zagalo, que sentiu lesão, entrando Babá. As mexidas parecem surtir algum efeito, os praianos, pela primeira vez, conseguem acuar o Flamengo e criar chances de gol, mas a ducha de água vem rápida e gelada. TRÊS minutos. O Santos vai evoluindo, avança suas peças, mas um passe errado faz com que Joel seja acionado na ponta, corte pelo meio e bata na saída de Manga. É o terceiro, é Flamengo 3-0, é o Maracanã novamente acordando.

A partir daí, desenha-se o espetáculo. O Flamengo roda a bola de um lado a outro, brinca de gato e rato com o Santos, que se irrita com seu inesperado papel de subjugado. Nervoso, Zito dá um sopapo no garoto Edson (que entrara no lugar de Luiz Roberto) e é expulso. Com a perda de seu capitão, o Santos está entregue e apenas espera o apito final, enquanto contempla um verdadeiro festival de inversões de bola, dribles e toques rápidos ao som de uma orquestra de aplausos, gritos e marchinhas. Já no final, o Flamengo faz uma última blitz, a bola sobra para Henrique que, como bom predador, não deixa passar a oportunidade e sacramenta o placar final. Flamengo 4-0 Santos e uma torcida saciada e feliz, cantando o amor à sua Nação.

O Flamengo terminará a competição na terceira posição, em uma campanha que, apesar de irregular, terá bons momentos (4-0 Corinthians, 4-1 Botafogo). Formará uma das melhores equipes do país, apesar do período pouco vitorioso (essa base de jogadores conquistará o Rio-São Paulo de 1961). Mas, acima de tudo, a temporada de 1957 mostrará mais uma vez aos desavisados que, quando seu torcedor acredita e quando seu time demonstra vontade de vencer, não importa o adversário, não importam as circunstâncias.

O Flamengo sempre se agiganta.