1927.
“É a
última palavra do clube?”
“Sim.
Sinto muito.”
“Nesse
caso, passar bem.”
O jogador
deixa a sede do Flamengo e se põe a caminhar. Exibe um misto de irritação e
decepção, não entende e nem aceita a atitude de um clube por quem deixou a vida
nos gramados. Uns ingratos, remói enquanto castiga com seus pés pesados os
pedriscos que eventualmente se interpõem em seu trajeto. Anos de dedicação, de
denodo, ajudando o Flamengo a erguer vários troféus e construir sólida reputação,
e a troco de nada. Nada, segue bufando enquanto segue seu trajeto aparentemente
errático. Mas Orlando Penaforte, apesar de enfurecido e nervoso, já sabe o que
fazer, já tem a solução. Campos Sales.

Mas a
diretoria não lhe deu outra alternativa.
Prestes a
se casar e sem o berço de outros futebolistas, Penaforte apenas pediu uma ajuda
ao clube. Queria que o Flamengo lhe mobiliasse o quarto, uma espécie de
reconhecimento, um bem vindo auxílio à guisa de presente. Mas a diretoria
rubro-negra foi irredutível, nada de presentes ou brindes que indiquem
favorecimento. Daqui a pouco, outro jogador irá demandar regalo semelhante, e
como ficamos? Ademais, é sabido que o clube não nada em dinheiro, não pode sair
por aí equipando a vida de seus atletas. Não e não. Infelizmente, o Flamengo
nada pode fazer nesse caso.
Amargurado,
Penaforte insistiu várias vezes, apelou para outros jogadores e dirigentes,
indignado com a recusa de um clube já tido como o mais popular da cidade, e que
a cada dia angaria mais adeptos, em lhe providenciar um punhado de armários e
criados-mudos. Sua história correu o meio futebolístico, e logo o América lhe
bateu à porta. Nós não lhe oferecemos um quarto. Vamos mobiliar-lhe a casa.
Penaforte
ouviu a oferta, mas estacou, hesitante. Pediu tempo.
Não é
comum jogadores trocarem de clubes para atuarem em rivais, não em um amadorismo
que, apesar de agonizante, ainda é cultuado quase religiosamente entre as
equipes mais tradicionais do Rio. O zagueiro sabe que, se trocar Paissandu por
Campos Sales, irá se tornar um sujeito maldito, traiçoeiro, pouco confiável.
Será vilanizado por metade da cidade, e a rigor terá apenas os rubros ao seu
lado.
Mas
agora, cego de ódio com a empáfia monolítica do Flamengo, irá assumir esse
risco. Sim, às favas com o que pensarem. Uma casa mobiliada não é algo a se
desprezar. E o América também é time de ponta, de elite. Certamente terá a
oportunidade de fazê-lo calar os muitos críticos que certamente irromperão.
Penaforte
bate à porta da sede americana. Está armado com um sorriso e uma resposta.
* * *
Passa-se
a temporada.
O
Flamengo vive a primeira grave crise de sua história, após ter sido suspenso
por ter disputado um amistoso com o Paulistano, envolvendo-se na briga entre
profissionais e amadores. Após forte indignação e pressão, a suspensão foi
anulada, mas o estrago já estava feito, o time desmontado, refeito às pressas
para a disputa do Carioca, um punhado de tocos de pau defendendo o sagrado
manto negro e escarlate, afundando em goleadas nos primeiros jogos, alvo de
risos e chacotas por toda a capital. Sem falar que seu principal jogador
sucumbe a uma fortíssima apendicite. Aos poucos, aquele grupo se fecha e
passa a atuar com uma garra e uma ferocidade poucas vezes vista em uma equipe
de futebol. E, com as camisas jogando sozinhas, chega à reta final do
campeonato disputando o título.
Enquanto
isso, Penaforte, como previra, se torna um nome proibido. Agraciado com
caudalosas vaias e apupos onde quer que seja reconhecido ou mencionado, vê o
limitado Hermínio ocupar a camisa rubro-negra que havia sido sua e se tornar
ídolo. Com efeito, Hermínio incorpora o espírito daquele time e passa as
rodadas enfiando sua cabeça nas pesadas botinas adversárias, enterrando a cara
na lama, saindo dos jogos com profundos hematomas e cortes vários. E ovacionado
por uma torcida que não se cansa de entoar “hurras” de rejeição a Penaforte.
Mesmo sem sua presença no estádio.
E o
futebol, quando deseja, sabe ser cruel como poucos em sua refinada ironia.
Passam-se
as últimas rodadas. O Flamengo, já embalado e vivendo uma epopeia que agora faz
todo o Rio de Janeiro acompanhar, sofrer e torcer (“vai ser histórico ver esses
onze cabos de vassoura serem campeões”), chega ao derradeiro embate. Está a uma
vitória do título. E o adversário é justamente o América.
O América
de Penaforte.
A Rua
Paissandu imerge em uma torrente de mentes e corpos ansiosos pelo desenrolar do
jogão de logo mais. Três campeões poderão irromper da grande decisão entre
Flamengo e América. O vencedor da partida, ou o Fluminense, em caso de empate. A
cidade passa uma semana sem desviar os olhos ou o assunto. Só se fala, só se
respira, só se ingere a final do maior campeonato de todos os tempos.
Não cabe
mais ninguém no pequeno campo dos Guinle. Apinhados, espremidos, pendurados, os
torcedores transpiram e respiram o quente e tenso ar dos momentos decisivos.
Entra o Flamengo, estádio explode em palmas e gritos de apoio. Alguns
reconhecem o bravo Moderato, ainda convalescendo da apendicite, entre os onze
do time, e comovidos com a coragem do ídolo, entoam-lhe cantos de aplauso e
homenagem.
Entra o
América. Um ensurdecedor colchão de vaias encobre Penaforte. São arremessados
no zagueiro palavrões, xingamentos, ofensas e até objetos. O time rubro não
reage, parece indiferente. A princípio.

O América
ainda irá reagir e tornar dramático o final da partida, mas os 2-1 darão ao
Flamengo um dos mais festejados títulos de todos os tempos. A torcida, mesmo em
festa, não se esquecerá de Penaforte, homenageando o traidor com um enterro
simbólico pelas ruas do Centro do Rio. É uma conquista emblemática, que mostra
a todos que, não importa quem chegue, quem saia, quando time e torcida andam
juntos, quando a essência flamenga se entranha em sua equipe, bastam as
camisas. Basta o Manto.