Saudações
flamengas a todos.
É tempo
de especulações sobre contratações, dispensas, pipocam discussões sobre a forma
como se deve gerir o elenco, é o momento em que todos nós externamos nosso lado
de dirigente de futebol.
Para
incrementar a coisa, deixo aqui essa semana uma história essencialmente verídica.
Os mais curiosos poderão tentar adivinhar os seus protagonistas e a época.
Boa
leitura.
* * *
O veículo
acaba de estacionar.
De seu
interior desce um sujeito empertigado, enfatiotado em um terno que nitidamente não
lhe complementa bem, especialmente nesses escaldantes ares cariocas. Mas é
necessário o toque de formalismo, dentro de instantes não se começarão a
discutir amenidades.
Chamativa
pasta nas mãos, o agente é encaminhado para o local da reunião, uma sala
decorada com parcimônia e cores que remetem, talvez em excesso, ao negro e ao
vermelho. Parece pouco à vontade mas evita opinar, apenas ouve seu cicerone
entreter-se em observações genéricas sobre o clima, a política e até a beleza
das mulheres nativas, tudo com o exclusivo intuito de evitar que o momento de
espera seja inundado por um incômodo silêncio. O agente escuta, sorri aqui e
ali e aguarda, lacônico.
Enfim, é
recebido. Os dirigentes o saúdam com polida educação, oferecem-lhe um
confortável assento, acomodam-se, bebericam um café amargo, perguntam-lhe da
viagem, dedilham mais alguns minutos com assuntos menores. Polido, procura
ater-se ao mínimo que recomenda o limite da educação. Subitamente, o presidente
resolve acabar com aquilo. Com alívio, o agente o ouve comandar, “vamos
começar.”
Estão ali
para tratar da renovação do contrato de seu cliente.
O agente,
calmamente, repete os termos que havia exposto em contatos anteriores. Seu
cliente quer 350, valor total (não mensal) de um contrato de seis meses, entre
salários, luvas, direitos e outros agrados. Reitera que há outro clube que já
aceitou pagar esse valor pelo jogador. E que o Flamengo dispõe da prioridade
por ser o empregador atual, mas se a oferta não for coberta, não vê outro
caminho a não ser encaminhá-lo para o acerto com a outra equipe.
Sem
demonstrar muito incômodo, o presidente retruca, fala da importância que o
jogador adquiriu no Flamengo, de se ter tornado estrela, da vitrine
incomparável em que consiste o Flamengo, entre outras alegações. Até
pertinentes, pensa o agente, mas colocadas ali apenas como estratégia
diversionista de negociação.
Após toda
a arenga, o presidente crava, 225. Impossível, emenda o agente, por esse valor
não há como negociar. O presidente sai da sala com mais duas pessoas, alguns
intermináveis minutos depois retorna, 225 mais imposto de renda que o clube
assume. O agente pede licença, precisa de um telefone.
Entra em
contato com o cliente, que se mostra visivelmente perturbado. Balança,
titubeia. “Acho que vou aceitar”, “Não fale bobagem, mesmo com o imposto a outra
proposta ainda é bem melhor”, “Mas eu gosto do Flamengo, me sinto bem lá”,
“você é profissional, tem que ser racional, ninguém vai olhar o seu lado se não
for você mesmo”, “tá bom, siga tentando ver o que consegue.”
O agente
retorna com a negativa. Algumas considerações e discussões mais e a reunião é
interrompida, novo contato com o cliente, que aceita reduzir para 310. Se o
Flamengo chegar aos 310, o jogador fechará com o clube e irá ignorar os 350 da
outra oferta.
A chegada
da noite e a deficiente iluminação tornam a sala mais escura, pano de fundo
adequado para a tensa situação. Ninguém sorri, as brincadeiras cessam, o agente
e os dirigentes silenciam encolhidos em seus cálculos paralelos. O presidente
retorna, “vamos continuar”. Recebe a contraproposta dos 310. Permite-se um
sorriso, “agora estamos sendo razoáveis”, dá a entender que o negócio é
possível. Pede licença com mais dois dirigentes e sai.
Ao
retornar, parece mais leve e afável, “Acho que podemos fechar por esse valor”.
Desconfiado, o agente recebe a informação com ceticismo. No fundo sabe que seu
cliente quer ficar no clube e não irá criar problemas para sua renovação, desde
que perceba o interesse do Flamengo em lhe proporcionar um contrato vantajoso.
E a rigor, pelo que tem saído nos noticiários, não parece sentir esse desejo
genuíno dos dirigentes. O Flamengo sinaliza com mudanças na sua administração,
e se fala em reformulações. Informado, sabe que a diretoria rubro-negra está
dividida, nem todos desejam manter seu jogador, tido como caro. É a partir de
agora que o agente captará os sinais, alguns contundentes, outros sutis. É a
hora das armadilhas verbais.
A
negociação agora irá evoluir para outros termos. “Há aquela dívida de 104”,
“perfeito, vai ser paga, mas vamos tratar disso em outro momento”,
“naturalmente, por fora dos 310”, “sim, claro, nada a ver com os 310”. “As
luvas poderão compor junto com o salário, mas queremos 50% adiantado”,
“de acordo, faremos assim”, “e o imposto de renda, também preferimos receber
logo o valor”, “não, mas nesse acerto o imposto de renda já não entra.”
Silêncio.
O agente subitamente interrompe a discussão, refaz algumas contas. Na verdade,
a oferta de 310 na prática significa 270. Ele pede licença e deixa a sala,
precisa novamente entrar em contato com o cliente, que pela primeira vez começa
a demonstrar irritação. “os caras tão de brincadeira, não é possível”. Mesmo
assim orienta o agente “parece que estamos nos aproximando, continue tentando”.
Mas, lá no íntimo, o agente sabe que não há aproximação alguma. Experiente em
outras negociações, percebe que algo ali parece conspirar para que o acerto não
aconteça. A diretoria fala em austeridade, em cortar custos. Com
efeito, a temporada não foi boa, embora o jogador tenha mantido o prestígio
quase intacto, com boas atuações. E há a torcida, que o tem como ídolo,
politicamente é perigoso arriscar-se a perdê-lo para outra equipe. Mesmo assim,
o agente não está seguro. E aquela conversa de que “é importante jogar no
Flamengo, aqui é Flamengo, amor à camisa” que insistem em lhe enfiar orelha
abaixo não ajuda a tornar as coisas mais produtivas.
Mais uma
rodada se inicia. O agente, já apresentando certo esgotamento, emenda “podemos
discutir seus 310, que na verdade são 270, mas precisamos de garantias efetivas
de que iremos receber esses valores em dia, porque estamos abrindo mão de uma
proposta bem maior”. “mas você tem que entender que a realidade do futebol não
permite esse tipo de garantia, um contrato desses não é simples, em oito meses
muita coisa pode acontecer”, “epa, epa, oito meses? Não estávamos falando de um
período de seis meses?”, “mas esse valor total a gente só pode pagar em oito
meses.”
É a
confirmação dos temores e das impressões do agente. No fundo, o Flamengo não
quer ficar com o jogador, agora há a certeza. O agente pede para encerrar a
reunião e compromete-se a dar uma resposta definitiva no dia seguinte, mas já
adianta que será negativa.
E, com
efeito, o enfurecido jogador convoca a imprensa e anuncia com estardalhaço, “no
Flamengo eu não jogo mais, não me querem lá”, diz-se magoado e desiludido, e
desde já anuncia que irá aceitar a proposta do outro clube, que manifesta euforia
pelos jornais.
Surpreendida
com as declarações do atleta, a diretoria também anuncia o encerramento das
negociações e manifesta ter feito “o possível e o impossível” para renovar o
contrato, mas o craque não respeitou a sua história no Flamengo e forçou uma
situação de um salário irreal, com exigências descabidas.
O
bate-boca ainda durará mais alguns dias, até o jogador anunciar a celebração do
contrato com a outra equipe. Na apresentação, o craque não perde a oportunidade
para alfinetar o rubro-negro, cravando que “com essa mentalidade, eu duvido que
o Flamengo conquiste alguma coisa importante por agora.”
Os
dirigentes do rubro-negro dessa vez preferem ignorar o agora ex-atleta. Com o
dinheiro que seria gasto com a renovação do contrato, o Flamengo refaz seu
elenco, contrata algumas peças e começa a montar uma nova equipe. Em silêncio.
Pouco
tempo depois, será campeão estadual e brasileiro.