domingo, 28 de abril de 2013

Alfarrábios do Melo



Saudações flamengas a todos.

É tempo de especulações sobre contratações, dispensas, pipocam discussões sobre a forma como se deve gerir o elenco, é o momento em que todos nós externamos nosso lado de dirigente de futebol.

Para incrementar a coisa, deixo aqui essa semana uma história essencialmente verídica. Os mais curiosos poderão tentar adivinhar os seus protagonistas e a época.

Boa leitura.

* * *

O veículo acaba de estacionar.

De seu interior desce um sujeito empertigado, enfatiotado em um terno que nitidamente não lhe complementa bem, especialmente nesses escaldantes ares cariocas. Mas é necessário o toque de formalismo, dentro de instantes não se começarão a discutir amenidades.

Chamativa pasta nas mãos, o agente é encaminhado para o local da reunião, uma sala decorada com parcimônia e cores que remetem, talvez em excesso, ao negro e ao vermelho. Parece pouco à vontade mas evita opinar, apenas ouve seu cicerone entreter-se em observações genéricas sobre o clima, a política e até a beleza das mulheres nativas, tudo com o exclusivo intuito de evitar que o momento de espera seja inundado por um incômodo silêncio. O agente escuta, sorri aqui e ali e aguarda, lacônico.

Enfim, é recebido. Os dirigentes o saúdam com polida educação, oferecem-lhe um confortável assento, acomodam-se, bebericam um café amargo, perguntam-lhe da viagem, dedilham mais alguns minutos com assuntos menores. Polido, procura ater-se ao mínimo que recomenda o limite da educação. Subitamente, o presidente resolve acabar com aquilo. Com alívio, o agente o ouve comandar, “vamos começar.”

Estão ali para tratar da renovação do contrato de seu cliente.

O agente, calmamente, repete os termos que havia exposto em contatos anteriores. Seu cliente quer 350, valor total (não mensal) de um contrato de seis meses, entre salários, luvas, direitos e outros agrados. Reitera que há outro clube que já aceitou pagar esse valor pelo jogador. E que o Flamengo dispõe da prioridade por ser o empregador atual, mas se a oferta não for coberta, não vê outro caminho a não ser encaminhá-lo para o acerto com a outra equipe.

Sem demonstrar muito incômodo, o presidente retruca, fala da importância que o jogador adquiriu no Flamengo, de se ter tornado estrela, da vitrine incomparável em que consiste o Flamengo, entre outras alegações. Até pertinentes, pensa o agente, mas colocadas ali apenas como estratégia diversionista de negociação.

Após toda a arenga, o presidente crava, 225. Impossível, emenda o agente, por esse valor não há como negociar. O presidente sai da sala com mais duas pessoas, alguns intermináveis minutos depois retorna, 225 mais imposto de renda que o clube assume. O agente pede licença, precisa de um telefone.

Entra em contato com o cliente, que se mostra visivelmente perturbado. Balança, titubeia. “Acho que vou aceitar”, “Não fale bobagem, mesmo com o imposto a outra proposta ainda é bem melhor”, “Mas eu gosto do Flamengo, me sinto bem lá”, “você é profissional, tem que ser racional, ninguém vai olhar o seu lado se não for você mesmo”, “tá bom, siga tentando ver o que consegue.”

O agente retorna com a negativa. Algumas considerações e discussões mais e a reunião é interrompida, novo contato com o cliente, que aceita reduzir para 310. Se o Flamengo chegar aos 310, o jogador fechará com o clube e irá ignorar os 350 da outra oferta.

A chegada da noite e a deficiente iluminação tornam a sala mais escura, pano de fundo adequado para a tensa situação. Ninguém sorri, as brincadeiras cessam, o agente e os dirigentes silenciam encolhidos em seus cálculos paralelos. O presidente retorna, “vamos continuar”. Recebe a contraproposta dos 310. Permite-se um sorriso, “agora estamos sendo razoáveis”, dá a entender que o negócio é possível. Pede licença com mais dois dirigentes e sai.

Ao retornar, parece mais leve e afável, “Acho que podemos fechar por esse valor”. Desconfiado, o agente recebe a informação com ceticismo. No fundo sabe que seu cliente quer ficar no clube e não irá criar problemas para sua renovação, desde que perceba o interesse do Flamengo em lhe proporcionar um contrato vantajoso. E a rigor, pelo que tem saído nos noticiários, não parece sentir esse desejo genuíno dos dirigentes. O Flamengo sinaliza com mudanças na sua administração, e se fala em reformulações. Informado, sabe que a diretoria rubro-negra está dividida, nem todos desejam manter seu jogador, tido como caro. É a partir de agora que o agente captará os sinais, alguns contundentes, outros sutis. É a hora das armadilhas verbais.

A negociação agora irá evoluir para outros termos. “Há aquela dívida de 104”, “perfeito, vai ser paga, mas vamos tratar disso em outro momento”, “naturalmente, por fora dos 310”, “sim, claro, nada a ver com os 310”. “As luvas poderão compor junto com o salário, mas queremos 50% adiantado”, “de acordo, faremos assim”, “e o imposto de renda, também preferimos receber logo o valor”, “não, mas nesse acerto o imposto de renda já não entra.”

Silêncio. O agente subitamente interrompe a discussão, refaz algumas contas. Na verdade, a oferta de 310 na prática significa 270. Ele pede licença e deixa a sala, precisa novamente entrar em contato com o cliente, que pela primeira vez começa a demonstrar irritação. “os caras tão de brincadeira, não é possível”. Mesmo assim orienta o agente “parece que estamos nos aproximando, continue tentando”. Mas, lá no íntimo, o agente sabe que não há aproximação alguma. Experiente em outras negociações, percebe que algo ali parece conspirar para que o acerto não aconteça. A diretoria fala em austeridade, em cortar custos. Com efeito, a temporada não foi boa, embora o jogador tenha mantido o prestígio quase intacto, com boas atuações. E há a torcida, que o tem como ídolo, politicamente é perigoso arriscar-se a perdê-lo para outra equipe. Mesmo assim, o agente não está seguro. E aquela conversa de que “é importante jogar no Flamengo, aqui é Flamengo, amor à camisa” que insistem em lhe enfiar orelha abaixo não ajuda a tornar as coisas mais produtivas.

Mais uma rodada se inicia. O agente, já apresentando certo esgotamento, emenda “podemos discutir seus 310, que na verdade são 270, mas precisamos de garantias efetivas de que iremos receber esses valores em dia, porque estamos abrindo mão de uma proposta bem maior”. “mas você tem que entender que a realidade do futebol não permite esse tipo de garantia, um contrato desses não é simples, em oito meses muita coisa pode acontecer”, “epa, epa, oito meses? Não estávamos falando de um período de seis meses?”, “mas esse valor total a gente só pode pagar em oito meses.”

É a confirmação dos temores e das impressões do agente. No fundo, o Flamengo não quer ficar com o jogador, agora há a certeza. O agente pede para encerrar a reunião e compromete-se a dar uma resposta definitiva no dia seguinte, mas já adianta que será negativa.

E, com efeito, o enfurecido jogador convoca a imprensa e anuncia com estardalhaço, “no Flamengo eu não jogo mais, não me querem lá”, diz-se magoado e desiludido, e desde já anuncia que irá aceitar a proposta do outro clube, que manifesta euforia pelos jornais.

Surpreendida com as declarações do atleta, a diretoria também anuncia o encerramento das negociações e manifesta ter feito “o possível e o impossível” para renovar o contrato, mas o craque não respeitou a sua história no Flamengo e forçou uma situação de um salário irreal, com exigências descabidas.

O bate-boca ainda durará mais alguns dias, até o jogador anunciar a celebração do contrato com a outra equipe. Na apresentação, o craque não perde a oportunidade para alfinetar o rubro-negro, cravando que “com essa mentalidade, eu duvido que o Flamengo conquiste alguma coisa importante por agora.”

Os dirigentes do rubro-negro dessa vez preferem ignorar o agora ex-atleta. Com o dinheiro que seria gasto com a renovação do contrato, o Flamengo refaz seu elenco, contrata algumas peças e começa a montar uma nova equipe. Em silêncio.

Pouco tempo depois, será campeão estadual e brasileiro.