domingo, 7 de abril de 2013

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos.

1.Garcia, 2.Leandro, 3.Domingos, 4.Píndaro, 5.Júnior, 6.Carlinhos, 7.Dequinha, 8.Zizinho, 10.Zico.
Hoje é o dia de listar o camisa 9 do (meu) Flamengo de todos os tempos. E, de todas as escolhas, essa foi a mais difícil.

O Flamengo, por sua histórica índole ofensiva, sempre dispôs de goleadores mortíferos, como Pirilo, Henrique Frade, Nunes, Índio e os mais recentes Bebeto, Romário, Gaúcho e Adriano, todos goleadores, ídolos e campeões em suas épocas.

Mas essa escolha foi extremamente complicada porque eu me restringi a dois nomes, ambos craques, ambos protagonistas, ambos vitoriosos com o Manto Flamengo. E apenas um deles poderia figurar na minha equipe. O nome do preterido deixarei para divulgar na próxima postagem, que será a última sobre o assunto (para dar algum suspense, né?)

E o escolhido está no texto abaixo. O maior de seu tempo e um dos fatores de formação do caráter nacional da nossa torcida. Boa leitura.

9 - LEÔNIDAS

1939.

É dia de festa.

Semana passada, o Botafogo cantou vitória antes e perdeu pro Ameriquinha (4-5). E o Flamengo é campeão da cidade por antecipação.

Doze anos sem gritar, sem comemorar, sem festejar. Doze anos de fome e sede, doze anos malditos, doze anos batendo palmas para outros clubes, doze anos engolindo em seco o sofrimento, a frustração, a sangrenta dor de se perceber coadjuvante e assim destituído de toda a sua essência vitoriosa.

Doze anos em que se deu o basta, se estruturou o clube, se profissionalizaram os jogadores, se chamou a torcida para se associar, se construiu um campo próprio e se contrataram grandes jogadores.

Agora é a hora dos frutos. A hora de festejar, gritar “é campeão”, mostrar-se o melhor de tudo e de todos.

É domingo, todos às Laranjeiras. É o Flamengo e Vasco da festa do título, da festa da taça.

O estádio do Fluminense está lotado até a tampa. Gente subindo em árvore, montada no pescoço, pendurada no teto. Uma turba forçando portão, esbarrando com polícia, tocando um alarido infernal, depois do jogo vai ter o corso da vitória. Hoje é dia de Flamengo, é o dia do carioca, é carnaval em pleno dezembro.

Os jogadores do timaço flamengo estão perfilados, vai começar a homenagem gentilmente preparada pela diretoria do Fluminense. Estão lá alinhados Yustrich, Volante, Newton Canegal, Sá, Jarbas, Gonzalez, Valido, Domingos, todos os craques.

E Leônidas.

A cada acorde entoado pela banda da Polícia Militar, o Diamante Negro parece sorrir desafiadoramente, estampando na cara uma deliciosa resposta aos que o detratavam com a pecha de genial, genioso e perdedor. Com efeito, desde que chegara à Gávea em 1936, Leônidas havia marcado sua trajetória com gols, confusões e uma relação de paixão e ódio que não tornava ninguém indiferente. Sua imensa popularidade de superastro ajudou a anabolizar a popularidade de um Flamengo sem conquistas, mas em colateral as cobranças também vieram aos magotes, fazendo do grande craque o responsável pelos insucessos de um time ainda em formação.

Termina a apresentação da orquestra, agora os jogadores do Flamengo se encaminham para a beira do gramado. Em fila, precedidos pela própria banda da PM e pela corporação de escoteiros, os campeões da cidade desfilam ao redor do campo, ovacionados por uma entusiasmada plateia que atira aos heróis flamengos uma chuva de serpentinas e papeis picados, secundadas por calorosas palmas.

E Leônidas ali, empertigado, sorve cada aplauso como se a festa fosse somente pra ele.

Após a perda da Copa do Mundo, o Diamante jurou fazer do Flamengo campeão. Em 1939 o rubro-negro enfim monta uma equipe capaz de lhe restituir o protagonismo há tantos anos perdido. E tem um Leônidas especialmente mordido com as críticas de “mercenário”, “agitador”, “desagregador” e “perdedor”. Um craque sem títulos. Não, o principal jogador do país em atividade, o maior ídolo do Flamengo, clube ao qual se apegou, não irá permitir que sua passagem seja marcada por esse tipo de adjetivo.

E joga bola. Muita bola. Flamengo quebra um jejum de anos contra o Fluminense. 2-1, gol de Leônidas. Enfia 3-0 no Vasco, dois do Diamante. Jogo duro contra o surpreendente São Cristóvão, que também disputa o título, 2-1 com Leônidas definindo. Faz 4-1 no Botafogo, espécie de final antecipada, atuação de gala e gol de Leônidas. Um jogo melhor que o outro, uma sucessão de atuações ao nível do melhor de todos, adversários sendo um a um empilhados, até que a inesperada derrota botafoguense pro mequinha acaba com a coisa, e o Flamengo é mesmo o campeão. E Leônidas é o craque do campeonato.

Mas ainda falta a última partida. O último solo.

Os dirigentes do Fluminense presenteiam a diretoria flamenga com uma bela estátua em bronze, alusiva ao título. É o final das festividades, vai começar a partida. O Vasco, até então figurante e que assistiu a tudo em silêncio, parece determinado a deixar sua marca na celebração. Para os lusitanos, a partida nada terá de festiva.

E isso parece ficar claro já com o apito inicial. Mostrando uma determinação pouco vista nas outras partidas, os camisas pretas tentam partir pra cima dos campeões com ímpeto, fome de uma vitória redentora. De fato, a temporada não foi boa para o Vasco, e uma vitória sobre o rival maior servirá como importante alento para as hostes lusas.

Mas o Flamengo é nitidamente superior, a diferença técnica é gritante. E, para frustração de um Vasco que esperava um adversário relaxado, o Flamengo está motivado e transpira de vontade de vencer a derradeira partida, fechando a ouro sua impecável campanha.

E Leônidas simplesmente enlouquece a (boa) linha de zaga vascaína, com uma movimentação incessante e dribles desconcertantes que abrem crateras na bem postada defesa rival. Com efeito, o ataque formado por Leônidas com os irrequietos Sá e Jarbas nas pontas, Valido armando e o guerreiro argentino Gonzalez mais à frente faz da linha de frente flamenga algo apavorante, que assombra os mais sólidos ferrolhos.

Escanteio, bola alçada na área cruzmaltina, Valido sobe mais que Argemiro e fulmina de cabeça, sem chances para o goleiro, num lance que será repetido daqui a cinco anos e se tornará histórico. Flamengo 1-0, um placar que já é injusto pelo volume de jogo mostrado pelo Flamengo. Era para ser de mais. As Laranjeiras se tornam um caldeirão, uma panela insuportável para a mediana equipe vascaína. Assustados, os camisas pretas já anteveem o desastre.

Mas o primeiro tempo termina mesmo com a vantagem mínima para o Flamengo.

Na volta do intervalo, já se percebe que Flávio Costa mandou o time avançar as linhas de marcação, o treinador vê que é viável construir um placar maior e não quer facilitar. Instintivamente, o Vasco recua todo o time, deixando apenas o atacante Gandulla mais isolado, na inglória tarefa de lutar contra a parede formada por Domingos e Newton.

A orientação de Flávio dá certo, e o Flamengo, que já controlava a partida, se torna senhor absoluto da situação. O time simplesmente desfila em campo, roda a bola de um lado a outro, num instigante jogo de gato e rato. Ansiando pelo prazeroso desfecho, a assistência clama por mais gols, grita, provoca, acende. E Leônidas decide acabar logo com aquilo.

O Diamante recua, pede bola, risca dois defensores, faz a tabela e chuta. O goleiro Nascimento defende, e na sobra o argentino Gonzalez apenas escora para o gol vazio, 2-0.

O Vasco dá a saída, tenta um ataque, perde a bola, que é alçada a Leônidas. O Diamante dá um drible desmoralizante em um zagueiro e vai chutar, mas percebe Gonzalez entrando completamente livre. Aciona o argentino, que meio estabanado emenda pro fundo das redes. Flamengo 3-0.

Agora o Vasco é só desânimo. A ordem é apenas evitar uma goleada humilhante. Sua defesa perde a vergonha e apela pra bicuda e pra porrada. A torcida flamenga quer mastigar as entranhas do adversário, quer mais gols, quer sair das Laranjeiras lavada de gols. Mas, por conta de certa afobação e mesmo do imponderável, as traves e o goleiro Nascimento vão impedindo que o placar assuma dimensões hiperbólicas.

O jogo vai se encaminhando para o final, os dois times começam a demonstrar cansaço. Feliz com a exibição de gala, a torcida esquece isso de goleada e começa a entoar seus gritos de ordem e saudações aos campeões. Houvesse olé nessa época, teria sido gritado à farta. O Flamengo roda a bola, roda o time, roda o jogo, o Vasco inerte apenas anseia ardente pelo fim do tormento. Está exangue, entregue, abandonado à própria sorte.

Mas Leônidas ainda não fez o dele.

O árbitro já olha o relógio e a partida irá se encerrar em instantes. O Diamante vai tentar um último solo. Vem até o centro do campo e pede a bola. Livra-se de um, dois. Abre na ponta e corre. A jogada tem sequência na extrema, até o lançamento que já encontra Leônidas na beira da área. Uma matada, um jogador de preto ao chão e o tijolo, a bomba sem deixar cair, a bola na gaveta, o pobre goleiro vascaíno pulando em vão. Leônidas olha para o público e acena, como que dizendo, “aí a goleada que vocês pediram”.

Sempre altivo, cabeça em pé, imperial, o Diamante entrega a bola ao árbitro. Agora pode terminar o jogo. Agora pode terminar o campeonato.

E é o fim. Flamengo 4-0 Vasco.

“Leônidas atuou pelo Flamengo entre 1936 e 1942, deixando o clube após um desentendimento com a diretoria. Nesse período conquistou o Carioca de 1939 e outros torneios menores, além do Rio-SP de 1940 (dividido com o Fluminense), que não é reconhecido pela CBF. Com a desconcertante marca de 153 gols em 149 jogos, é um dos goleadores com a maior média de gols da história do Flamengo.”

“Também ídolo no São Paulo, Leônidas tornou-se comentarista esportivo após encerrar a carreira de jogador. Faleceu em 2004, vítima de complicações ligadas ao Mal de Alzheimer.”