Saudações flamengas a todos.
Continuando o (meu) Flamengo de
todos os tempos, é a hora de escalar o camisa 8. Com menção honrosa a nomes
como Rubens, Adílio e Gerson, meu escolhido é um nome especial, que tem
lugar não apenas no time de todos os tempos flamengos, como em uma seleção de
jogadores brasileiros de todas as eras. Há craques, há gênios, há
foras-de-série. E há Zizinho, provavelmente o maior arco (armador) surgido na nossa história. Boa leitura.
A bola está com o Mestre.
O Mestre Zizinho afaga sua
companheira, penteia, faz cafuné e a conduz carinhosamente pela extrema direita
do campo. Livra-se de forma elegante de um ou dois pretensos gatunos e ergue o
olhar, somente para perceber que novamente intuíra o movimento correto. Pois o
ponteiro esquerdo está, nesse exato momento, entrando em diagonal, no espaço
que a movimentação de Ziza fez aparecer no meio da defesa com seu meneio para o
lado do gramado. É a hora de soltar a bola.
Zizinho faz uma última carícia,
dá um beijinho e se despede da bola. Um inesperado escorregão não tira a beleza
e o primor do passe, que atravessa obediente e recatada toda a extensão da
área, para pousar aos pés do atacante, que apenas ajeita o corpo e manda um
míssil que se arrebenta nas redes adversárias. Mais um gol, mais uma obra
meticulosamente pensada pelo cerebral Zizinho. Mas o mestre não está contente,
parece aborrecido, não comemora com entusiasmo.
O feliz e sorridente ponteiro
chega para abraçar o mentor de seu gol, e estranha, “que cara é essa Mestre, tu
viu o gol que tu me deu?”, “não gostei e lhe peço desculpas”, “ué, não tô
entendendo, tu me deu um presentaço”, “é que eu escorreguei e a bola não saiu
certa“, “?”, “na hora do passe eu escorreguei e não deu
tempo, eu queria lhe mandar a bola na passada certinha, era pra ela chegar no
tempo pra você mandar sem deixar cair, mas eu escorreguei. Não vai se repetir.”
Ao ponteiro, só restou o assombro.
Enquanto os mortais lutam e
treinam para acertar passes, Zizinho busca sincronizá-la com o movimento do
atacante...
*
* *
1939. O Flamengo acaba de se
sagrar campeão carioca pela primeira vez na Era Profissional, quebrando o maior
jejum de sua história (doze anos). É o coroamento de um trabalho de resgate que
estruturou o clube (construção da Gávea, ampliação do número de associados) e
proporcionou a montagem de um dos maiores esquadrões de sua história, um time
com Domingos, Leônidas, Valido, Newton Canegal, entre outros. E segundo os mais
informados ainda há um garoto comendo a bola nos treinos, um jovem que, dizem,
na primeira oportunidade irá conquistar a vaga na equipe.
A oportunidade chega na festa das
faixas, contra o Independiente. Dois amistosos, ambos em São Januário. Flávio
Costa resolve lançar o garoto. E não se arrepende.
Logo o público percebe que as
previsões dos analistas estavam erradas. O jovem mostra que não tem futebol
para ser titular da equipe. Tem jogo para ser o craque da equipe. Contra uma
das melhores equipes do futebol argentino, que vive o auge de sua história, o
garoto faz simplesmente o diabo. Dribles humilhantes, lançamentos exímios e
açucarados, assistências suculentas para os gols dos seus companheiros. O
Flamengo perde um amistoso (3-4) e vence o outro (2-1), mas os resultados são o
que menos importam. O Rio de Janeiro, de repente, esquece até mesmo o título
flamengo e passa a comentar em seus bares, botecos e tascas apenas uma coisa: o
monstruoso futebol praticado por esse jovem Zizinho, algo muito acima de
qualquer coisa que já se viu nos gramados brasileiros.
E Zizinho nunca mais saiu do
time.
*
* *
Passam-se seis meses, é a hora de
voltar aos treinos. A perna quebrada pelo zagueiro Adauto, do Bangu, já está
boa, cicatrizada e Zizinho anseia pelo seu reencontro com a bola, angustiado de
saudade.
Começam os treinamentos, o Mestre
Ziza percebe que seus colegas temem o contato, o confronto, a dividida. Cada
lance é um abre-alas, corredor escancarado à sua frente. “Isso não vai dar
certo”, pensa. Zizinho pede um mês de licença ao Flamengo em busca da resposta
definitiva, do teste final para a integridade de sua perna.
E lá vai Zizinho se enfiar nas
peladas de bairro da sua Niterói, torneios acirradíssimos a prêmios, a apostas,
onde ninguém aceita a derrota. O melhor jogador brasileiro e um dos maiores
craques do planeta mete suas pernas na frente das chuteiras raivosas e sangrentas
dos mais selvagens zagueiros, driblando os buracos de toiceiras muitas vezes
abertas a facão, traves amarradas no barbante, um público numeroso, febril e
embriagado de cachaça e bola.
Como combinado, um mês depois,
Zizinho se reapresenta. “Pode me escalar, já estou curado.”
*
* *
São os tempos do primeiro tri. O
Flamengo trucida sem piedade, mais um dos rivais que tentam em vão colocar-se
em seu caminho. Embasbacado com mais uma atuação soberba e sem qualquer erro a
olho nu de Zizinho, o cronista Nélson Rodrigues desiste de fazer qualquer
análise e vai logo ao ponto, cortante como de seu feitio.
“Vamos deixar de subterfúgios. A
questão é a seguinte. Pergunte-me, quem vai vencer o clássico, e eu lhe respondo,
o Flamengo. Porque o Flamengo tem Zizinho. Você olha a escalação e vê o nome de
Zizinho, já sabe quem vai vencer. É como as peladas de rua, quem tem o melhor
vence. Se Zizinho jogasse no Vasco, seria o Vasco o vencedor. Futebol às vezes
é simples como chupar um Chicabon.”
*
* *
A bola lhe acena, sorridente. O
Mestre se posiciona, pronto para afagá-la, acariciá-la, fazê-la gemer amante e
submissa. Recebe sua querida com um leve roçar nas coxas, um defensor
resfolega, vem pra dar no meio, arrancar-lhes as entranhas. Zizinho mal se
move, e com um leve meneio ergue a criança a dois palmos do agressor, que voa
em direção a um retumbante vazio. Impávido, Zizinho dá outro beijinho na bola e
percebe a meta à sua frente. Onde qualquer mortal vê mera fresta, Ziza enxerga
uma cratera, um latifúndio. E solta o tiro, seco, certeiro, mortífero. Alegre,
a bola se abandona às redes, enquanto a multidão estoura em um infernal
alarido. Mas não é de festa o zuadeiro, um sujeito trajando preto resolve
encontrar algo de sórdido no que é sublime e impugna o lance. Alega qualquer
coisa, e sem efeito são as manifestações de incredulidade e fúria ao seu redor.
Zizinho sorri e olha para a bola, cúmplice. Fazem um trato.
A partida tem sequência, e no
minuto seguinte Zizinho é novamente acionado. Como só os gênios reagem ao ser
desafiados, o Mestre arruma um jeito de dominar novamente a bola com a coxa.
Inocente, o zagueiro repete o ataque instintivo e colérico, apenas para ser
driblado exatamente da mesma forma, com um leve meneio de corpo. A mesma
fresta, a mesma cratera, o mesmo tiro, o mesmo canto, o mesmo gol, a mesma
explosão. Agora, de alegria, festa. Parece inacreditável, mas em apenas um
minuto Zizinho repete rigorosamente, com minúcia de detalhes, a mesma jogada, o
mesmo lance, qual um replay à frente em décadas. Sorri para o público, para o
árbitro e se encaminha para o meio. A bola debaixo do braço, inseparável.
Amante. Eterna amante.
“Zizinho atuou pelo Flamengo entre
1939 e 1950. Nesse período conquistou vários títulos e foi o principal jogador
da equipe rubro-negra, sendo decisivo na jornada do primeiro tricampeonato.