Saudações flamengas a todos,
É recorrente em discussões
futebolísticas a comparação entre ídolos do presente e do passado, ou a
montagem da “minha seleção de todos os tempos”. É uma forma de se estabelecer
referências, e por meio delas se pontuar uma identidade.
Nesse escopo, como seria um “Flamengo
de todos os tempos”? Creio ser impossível escalar uma formação indiscutível,
por conta de uma série de fatores (falta de registros de jogos no passado,
diferença de épocas, impossibilidade óbvia de se ter acompanhado todos os
jogadores, entre outros tantos). Mesmo assim, vou tentar.
E vou tentar usando, como
critério, os jogadores que mais aparecem nesse tipo de formação ao longo da
história. É possível compilar o “Flamengo de todos os tempos” montado nos anos
70 com o montado semana passada, por exemplo. E daí buscar construir uma lista
representativa. Evidentemente, não é uma escalação definitiva, mas eu creio
que, dos onze nomes, ao menos tenho a pretensão de que uns cinco ou seis sejam
tidos como indiscutíveis, o que já conferirá algum valor à lista.
Dessa forma, semanalmente será
exposto aqui um dos nomes dessa escalação. Não em forma de uma biografia
tradicional, daquelas “chegou ao Flamengo em tal ano, ficou tantos anos, ganhou
tantos títulos”, mas em um texto que ilustrará uma passagem em que o personagem
terá sido o protagonista. E convido todos a tentar ir adivinhando os próximos
nomes a figurarem nas semanas seguintes. Essa semana, começo com o
goleiro. SINFORIANO GARCIA. Boa leitura.
1 – SINFORIANO GARCIA
1949. O carioca acorda eriçado,
os pelos arrepiam-lhe a nuca, o abdômen se contrai, hirto e teso diante da
perspectiva da glória que se avizinha para logo mais.
É dia de gritar “Brasil Campeão”.
O Campeonato Sul-Americano chega
ao seu final. A Seleção Brasileira, após 30 anos de jejum, irá conquistar o
título continental após a decisão contra o Paraguai. Basta um simples empate
contra os paraguaios, que possuem uma seleção nitidamente inferior. E, como se
não fosse o suficiente, a partida será disputada no Brasil, em São Januário, na
nossa casa, na nossa cidade.
Não tem como dar errado. Não vai
dar errado. Já era. Já ganhou.
A maior dúvida entre os
torcedores não é saber SE o Brasil será campeão, mas COMO e DE QUANTO. A
campanha brasileira, até então, é irrepreensível, uma surra atrás de outra, uma
goleada que se torna histórica apenas até o dia da amassada seguinte. É 5-0 na
Colômbia, 5-1 no Uruguai (que mandou um time de juniores), 7-1 no Peru, 9-1 no
Equador, 10-1 na Bolívia. Os paraguaios apresentam números muito mais modestos,
tendo derrotado os mesmos adversários por placares bem mais modestos e
apertados, inclusive com uma derrota para os jovens uruguaios. Na rodada final,
o Brasil precisa somente de um empate. Ao Paraguai, resta o milagre da vitória
para forçar um jogo extra, no mesmo local.
O time brasileiro conjuga alguns
dos maiores craques de sua história. Zizinho, Jair, Ademir, Tesourinha, todos
dirigidos por Flávio Costa, que pretende fazer desta a base da equipe que irá
representar os brasileiros no Mundial do ano seguinte, também no Brasil.
Faixas de campeão já são vendidas
antes do jogo, jornais já saúdam os campeões, a festa da vitória já está
programada e marcada. Os jogadores brasileiros posam para fotografias, são
saudados como heróis nacionais, tal como os pracinhas que defenderam a honra da
pátria anos antes, no front europeu.
Enquanto isso, o Paraguai treina.
Chega a hora do jogo. São
Januário vive um princípio de tumulto, é nítido, cristalino que já não consegue
suportar os eventos de maior porte. Por pouco uma confusão de dimensões
colossais não acontece, graças à intervenção das forças policiais, que
energicamente evitam o pior. Mas o estádio está superlotado. Todos querem ver
de perto o Brasil campeão.
O Brasil inicia a partida
indolente, precioso, exibindo-se com toquinhos e driblinhos que arrancam
aplausos e palmas do público. Recuado e acuado, o Paraguai pouco mostra além de
bicuda e porrada. Aos poucos, a seleção vai se soltando e chegando perto do
gol, chutando bolas com frequência cada vez mais intensa à meta adversária.
Aí algo começa a sair do roteiro.
O goleiro paraguaio, um sujeito
alto, espigadão, braços enormes e muito forte, parece se recusar a exercer seu
papel no massacre anunciado. Começa a defender rigorosamente tudo. Quem é esse cara?,
perguntam, é Garcia, dizem que é bom. Pois o tal do Garcia atua como se sua
vida dependesse daquela decisão, e simplesmente nega ao Brasil o gol tantas
vezes anunciado e ensaiado. O jogo vai seguindo em um teimoso 0-0.
O que era festa começa a ficar
tenso.
Já se passam 30’ do primeiro
tempo, quando finalmente a plateia vai explodir. Bola lançada a Tesourinha, que
entra cara a cara com Garcia. O arqueiro projeta-se nos pés do atacante gaúcho,
que é mais rápido e desvia para o gol. Brasil 1-0, é o show, o espetáculo, o
grito, e volta a exibição, a firula e o toquinho. E termina o primeiro tempo.
Na segunda etapa, o treinador
paraguaio, um certo Fleitas Solich, irá mudar o panorama da partida. Fleitas
manda os paraguaios atacarem, o que surpreende a Seleção Brasileira e expõe as
grosseiras falhas do seu sistema defensivo. Comandado pelo atacante Benítez,
que deita e rola em campo, o Paraguai começa a fustigar o gol do Brasil com uma
intensidade imprevista até pelos mais céticos. Um tiro de longe, na gaveta,
Barbosa apenas assiste. É o empate. Silêncio em São Januário.
Mas a igualdade ainda dá o título
ao Brasil. Flávio Costa recua o time, que passa a prender e a tocar a bola. Mas
Benítez está impossível, e os paraguaios são uma ameaça real. Mas o tempo vai
passando, e pouco resta. Alguns lenços, tímidos, começam a ser agitados, um
tênue murmúrio de “campeão, campeão” parece que vai começar a tomar conta do
estádio. Restam apenas 6 minutos. Benítez sai riscando a defesa brasileira,
passa pelo meio de Augusto e Bigode, e toca macio, na saída de Barbosa. É inacreditável,
o Paraguai vira o jogo e está na frente. E o jogo já está no fim.
Desesperado, o Brasil liga a
artilharia, agora todos são atacantes, o estádio todo acossa o gol paraguaio.
Tesourinha chuta, Garcia pega. Zizinho manda a bomba, Garcia espalma. Jair
arrisca, Garcia agarra, Garcia defende, Garcia cata, Garcia, Garcia, Garcia. A
atuação do goleiro paraguaio beira a perfeição de forma tão sublime que chega a
irritar o público. O monstro paraguaio é um leviatã, uma força sobrenatural e
intransponível. Nas mãos de Garcia, parece estar materializada a fúria de um
castigo divino. E termina a partida. O Brasil, para espanto de um estádio
silencioso, perde a partida.
Ao final do jogo, um discreto
senhor consegue se aproximar de Garcia, e timidamente aborda o gigante
paraguaio. Apresenta-lhe um cartão, “precisamos conversar, é sobre uma proposta
de trabalho”. Marcam de se encontrar no dia seguinte. Negociam, e entram em
acordo. O futuro profissional de Garcia já está definido, após o sul-americano.
Garcia, agora, já é goleiro do
Flamengo.
“Ao contrário de 1950, o Brasil
terá a chance de reverter o fiasco da derrota para os paraguaios. No
jogo-extra, vencerá por 7-0 e conquistará o título. Garcia será apresentado ao
Flamengo semanas depois, em um desfile de carro aberto. Estreará numa partida
histórica, vitória sobre os ingleses do Arsenal por 3-1. Garcia, nos anos
seguintes, será titular e nome fundamental na conquista do tricampeonato de
53-54-55. Atuará no Flamengo até 1958.”
“Como curiosidade, Benítez e
Fleitas Solich também serão, mais tarde, contratados pelo Flamengo e farão
história no clube.”