Saudações
flamengas a todos.
Dando
continuidade à série (meu) “Flamengo de Todos os Tempos”, hoje apresento o
camisa 3. Quem tem maior contato com a história do clube haverá de concordar
que o nome de hoje se trata de uma escolha natural, quase óbvia. E no texto de
hoje tentarei mostrar o motivo.
O
time já está assim: 1.Garcia, 2.Leandro e hoje o número 3, Domingos da Guia.
Boa leitura.
3
- DOMINGOS
O
goleador está à espreita.
Pele
eriçada, olhos aguçados, boca seca, respiração suave. O predador sente a presa
acuada, o gol lhe parece sorrir, oferecendo-se para o mortal e derradeiro
abate, oferenda de suor e sangue para uma plateia sedenta.
Seus
companheiros evoluem com a bola, a fera acompanha sem piscar. Sabe o que deverá
ser feito. Não se intimida com a selva de camisas e pernas em negro e vermelho.
Não pode temê-los, precisa se impor, disso depende sua tarefa.
E
chega a bola.
Aninha-lhe
aos pés, iniciando seu letal trote. A assistência se levanta, logo haverá o
clímax. Um rubro-negro é driblado, dois. Pouco resta, agora. O alvo está aberto
à frente, basta ajeitar o corpo e tudo estará terminado.
É
quando surge a parede.
Um
leviatã de ébano erige-se agora diante de si, provindo do nada. O monstro se
move econômico, com passadas pensadas mas firmes. Busca se posicionar
exatamente à frente do goleador e travar-lhe o ímpeto. Mas o artilheiro,
conhecido por sua velocidade, prevê o movimento da criatura e com um rápido
meneio ginga-se para um lado, saindo pelo outro. O gigante mal se mexe, é
trespassado com insólita facilidade. Inebriado e faminto, o predador pouco
repara na profusão de aplausos, gritos e ruídos que explode das arquibancadas.
Sim, foi um belo truque. Mas ainda falta o gol, ali, escancarado diante de si, resignado,
entregue. Arma o pé de apoio, escolhe o canto e vai preparar o chute e consumar
enfim o ato.
Só
então percebe que está sem a bola.
Atônito,
o matador perde o equilíbrio e quase cai. Mas consegue, num esgar, virar-se
para trás, o suficiente para perceber o portentoso zagueiro sair jogando
majestoso, a cabeça levantada, os pés escondendo e acariciando a pequena
criança redonda. E os aplausos, os malditos aplausos insistem em jorrar
caudalosos, ferindo-lhe de morte a honra, a dignidade.
Nesse
momento exato, ele se percebe a verdadeira presa.
*
* *
Domingos
da Guia é a ação final de uma diretoria que assumiu o Flamengo disposta a
resgatar o clube da desastrosa crise vivida nos anos 1930, o pior momento de
sua história. Enfim pronto para lidar com os novos tempos profissionais, o
clube consegue erguer sua sede no longínquo bairro da Gávea, lança um ambicioso
programa de ampliação do quadro de sócios, amplia sua rede de identificação de
jovens talentos (muitos deles vindos dos clubes menores), aproxima-se de seu
torcedor. E, numa tacada ousada, negocia com o Boca Juniors o empréstimo do
zagueiro, suspenso na Argentina por seis meses.
E
a manobra se reveste em um acerto espetacular. Domingos, o célebre Divino
Mestre, campeão na Argentina, no Uruguai e até no Vasco, o craque de bola
Domingos, titular da Seleção Brasileira e ídolo por onde passa, rapidamente
conquista de forma indelével e irreversível os corações de uma jovem nação que
começa a se formar. Com efeito, vários herois flamengos, na curta história do
clube, receberam respeito, reverência, admiração de sua barulhenta torcida. Mas
Domingos é o primeiro ídolo, a primeira celebridade, a primeira estrela, o
primeiro que circula de carro aberto, que é parado na porta do cinema, que dá
autógrafo a cada esquina, que não consegue comprar um pão.
E
isso o apaixona.
Encerrado
o período da suspensão, Domingos volta a contragosto ao Boca, apenas para
arrumar uma confusão e forçar sua saída. Historicamente comedido e tido como
extremamente profissional por seus pares, o sujeito está completamente
cativado, alucinado, arrepiado com o Flamengo. “é um mosquito que me picou,
desde que vesti essa camisa percebi que meu lugar é aqui, aqui eu jogo como se torcedor fosse.”
E
Domingos, o homem que transformou o ofício de defender em uma arte, exala sua
paixão com atuações magistrais, verdadeiras obras de arte. Nega-se a correr
atrás de atacantes, basta lançar mão de sua fenomenal colocação em campo e sua
notável capacidade de antevisão das jogadas. Habilidoso ao extremo, chega a ser
mais talentoso do que a esmagadora maioria dos atacantes que enfrenta, muitos
deles absurdamente mais velozes do que o colossal zagueiro. Seus desarmes
limpos, cirúrgicos e ladinos aterrorizam os oponentes de tal forma que o
consagrado Tim, do Fluminense (um dos principais atacantes da Seleção), admite
se recusar a enfrentá-lo no mano a mano, “é inútil, impossível, prefiro buscar
a tabela”.
O
Flamengo vai se reerguendo, se estruturando, começa a disputar títulos, outros
craques são contratados, descobertos, revelados. Um dos maiores times da
história rubro-negra vai sendo montado, e logo as taças aparecem. Domingos é
protagonista do célebre título de 1939, que quebra DOZE anos de jejum (o maior
de todos), e do início dos dourados anos do primeiro tri.
*
* *
O
Botafogo ataca em velocidade, o time entra tabelando. A bola é lançada em
velocidade para Heleno, que entra na área. Domingos vem na cobertura mas não há
como antecipar o atacante, que está bem à frente. O jeito é esticar-se todo e
colocar toda a força no seu pé direito, que explode a bola numa estupenda
bicuda, projetando-a para o meio do público que abarrota as Laranjeiras.
A
plateia, formada na sua maioria por associados do Fluminense (que entram de
graça), não gosta da solução e passa a vaiar Domingos. O público espera
espetáculo, jogadas graciosas do Divino, não prosaicas espanadas de roça.
Domingos, que desde sempre nutre especial desapreço pelos tricolores e sua
nobreza estéril, bufa, acena um gesto obsceno e sai caminhando. Está
encolerizado.
No
lance seguinte o Botafogo chega novamente, Yustrich sai do gol mas não alcança, o toque é
sutil e vai entrar na meta flamenga. Mas Domingos chega antes e, em cima da
linha, ajeita a bola no peito e a pisa, carinhoso. O ataque parece dominado.
Mas
Domingos ainda está irritado.
E
o Divino, pés em cima da bola, veias saltadas, olhos vermelhos e esbugalhados,
grita e acena para os atacantes botafoguenses. Chama TODOS pra briga, venham
tomar-me a bola. O torcedor flamengo não acredita, não pode crer que seu
zagueiro está parado, na linha do seu gol, atiçando um ataque inteiro.
O
primeiro é Heleno, que avança esbaforido. Domingos alça-se para o lado e senta
o temperamental atacante ao chão, a bola por entre suas pernas. A seguir, dois
alvinegros aparecem simultâneos, obstinados. O colosso dá um leve tapa na bola
e um abano, e os dois botafogos colidem e se espatifam entre si, dividindo
escoriações e rasgos de sangue. Mais um alvinegro no caminho, mais um rabisco,
mais um no chão. Parece inacreditável, e é inverossímil, mas Domingos acaba de
demolir um dos mais devastadores ataques de todo o futebol brasileiro. E o
monstro ainda não saiu da área.
Mas
ainda há Heleno, que se ergue sedento, espumando, lacrimejando sangue, a alma
ansiando vingança. A besta fera atira-se, abandona seu corpo alucinado em
direção a Domingos, mira-lhe a jugular. O Divino, sem sequer lhe dignar um
soslaio, apenas gira e segue seu trajeto, enquanto Heleno desaba e se
desintegra, a boca amarga de grama, sangue e lama, os escombros de sua
existência soterrados na poeira de Álvaro Chaves.
Domingos
caminha mais um pouco com a bola, cabeça erguida, tronco reto, monarca,
imperial. Vislumbra o ponta Vevé preparando a corrida, e lhe remete com carinho
um lançamento macio, limpo, preciso, a bola passando por milímetros sobre as
incrédulas cabeças adversárias.
O
leviatã, então, encara o público, remove da cabeça um imaginário chapéu e se
inclina, como um tenor, um sublime solista. E os aplausos irrompem caudais,
verborrágicos, plenos, suntuosos.
E
somente então Domingos se permite esboçar um tênue sorriso.
“Domingos
da Guia atuou no Flamengo entre 1936 e 1943. Nesse período conquistou três
Campeonatos Cariocas (o mais importante título da época), entre outros troféus.
Em 1943 foi negociado com o Corinthians, onde também foi ídolo. Encerrou sua
carreira no Bangu, clube que o revelou. Seu filho Ademir se tornou, mais tarde,
um dos maiores jogadores da história do Palmeiras.
Domingos da Guia é considerado por muitos o maior
zagueiro da história do futebol brasileiro.”